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Aprendendo com as bactérias a como curar doenças genéticas

A descoberta de como as bactérias se protegem de invasões virais abriu uma avenida de oportunidades para o tratamento de doenças genéticas em humanos

Por Bernardo Garicochea
2 mar 2018, 13h44

Brian Madeaux é portador de uma doença muito rara e grave, e sua atitude para enfrentar este inimigo mortal pode mudar a historia da medicina. Esse senhor de 44 anos é portador de uma doença genética devastadora, a síndrome de Hunter. Pacientes com esta doença nascem com a inabilidade de processar certos tipos de açúcares nos tecidos e apresentam desde a infância retardos no desenvolvimento, problemas neurológicos e em outros órgãos.

Estes pacientes morrem geralmente antes da adolescência, se não receberem uma injeção semanal da enzima que não conseguem produzir. Ainda assim, as sequelas da doença são intensas durante toda a vida. E o tratamento tem um custo estratosférico.

Madeaux aceitou participar de um tratamento experimental com uma forma de terapia genética que poderia substituir o gene defeituoso. Ele já foi submetido a 29 cirurgias. Dá para imaginar a quantidade de sofrimento que ele suportou nestas poucas décadas de vida. O experimento iniciou-se na metade de novembro. Em algumas semanas já poderemos saber se o gene pode ser de fato substituído com a estratégia utilizada. Será um novo capítulo na história da medicina.

Eu fico perplexo com a velocidade com que experimentos ou hipóteses científicas que eu leio em revistas especializadas em ciência saltam para a vida real nos últimos anos. Não achei que viveria o suficiente para poder ver tratamentos genéticos para doenças incuráveis virando realidade da noite para o dia, graças a mentes brilhantes e uma mudança de mentalidade em investimento em ciência existente em países do primeiro mundo.

No meio da pasmaceira e das dificuldades tribais que vivemos, a meritocracia funciona em alguns nichos. Felizmente estes nichos são talvez os mais importantes para o nosso futuro. Quem diria que talvez seja mais fácil consertar o DNA humano, do que erradicar a pobreza ou eliminar a guerra.

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Alguém poderia argumentar que mexer na nossa estrutura biológica fundamental, o DNA, pode ser uma aventura perigosíssima e sem volta. E essas pessoas têm mesmo razão. Mas há chance considerável que em um processo de médio prazo, primeiro curando doenças e depois modificando genes que podem contribuir no comportamento, criatividade ou humor, possamos aprender o suficiente para fazer com que essas transformações sejam graduais e os resultados podem perfeitamente serem benéficos para a nossa especie. Esta chance é real.

Irreal é esperar que a mesquinharia do gênero homo seja consertada com apelos a mudanças culturais que nos tornem mais éticos ou morais. Aliás, religiões e sistemas políticos já tentam isso há alguns milênios, não é? E quantas vezes os resultados destas tentativas foram catastróficos? Aqui entre nós, confio mais nos cientistas (sempre com todas as salvaguardas necessárias, óbvio) do que nos políticos ou lideres religiosos messiânicos…

Como os cientistas fazem para manipular os genes?

Tentativas tímidas de inserir genes normais em pessoas com doenças hereditárias são relatadas desde os anos 70. Estas tentativas nunca foram bem-sucedidas. Ou os genes inseridos não eram incorporados pelas células do paciente ou eram rapidamente eliminados.

Uma descoberta ocasional feita nos anos 80 mudou toda esta história. Na medida que os cientistas desenvolviam melhores tecnologias para ler DNA, algumas informações curiosas começaram a emergir a partir de sequências de DNA de seres unicelulares. Bactérias apresentavam com frequência certas repetições inesperadas no seu DNA que curiosamente refletiam sequencias de DNA de vírus.

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Logo ficou claro que estas sequências de DNA estavam lá para proteger a bactéria de danos causados pela invasão do DNA do vírus. Cada vez que o DNA do vírus invade a bactéria, esse DNA estranho é alocado exatamente nestas sequências especiais, chamadas de CRISPR (um acrônimo que simplifica esta complicada descrição a seguir: agrupamento de repetições curtas palindrômicas regularmente interpaçadas).

Quando as regiões CRISPR se modificam com a invasão indesejável do DNA viral, há o acionamento de um outro sistema, chamado de Cas (acrônimo em inglês para: proteínas associadas à CRISPR), que tem a propriedade de cortar o DNA exatamente no sitio em que o mesmo foi invadido. Tesouras de DNA.

Cortado fora o segmento de DNA indesejado, o DNA liga-se novamente na sua configuração original. Uma forma muito engenhosa da bactéria evitar de ficar gripada. Mas, para nós, seres multicelulares, esta descoberta abria uma avenida para grandes oportunidades.

Se existe uma sequência de DNA que pode ser removida naturalmente por uma enzima específica, porque não se utilizar desta combinação: CRISPR (sequência-guia) e Cas (tesoura molecular), para remover pedaços indesejados do DNA. Basta colocar as sequências alvo CRISPR nas proximidades do gene indesejável e deixar que Cas faça o resto do trabalho. O gene é removido, e uma cópia de DNA contendo o gene normal é inserido no local. Esse procedimento chama-se edição de DNA.

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Pronto. Tínhamos em mãos uma ferramenta capaz de modificar o DNA de qualquer criatura viva, retirando genes indesejáveis, repondo genes desejáveis. Os primeiros experimentos mostravam algumas dificuldades. A combinação CRISPR/Cas também atuava em áreas do DNA onde não era chamada, gerando mutações que poderiam ser perigosas.

Aplicações da edição de DNA

Os experimentos com o par CRISPR/Cas passaram a ser aprimorados e atingiram o clímax de criatividade nos últimos dois ou três anos:

  • Cientistas indianos aplicaram este sistema para modificar o DNA de mosquitos da malária, de forma que os mesmos rejeitassem o parasita
  • Em uma ilhota próxima a costa do Maine, cientistas estão tentando erradicar a doença de Lyme, uma moléstia muito comum nesta área, que é causada por uma bactéria que infecta um carrapato que por sua vez habita um rato branco selvagem.

Os ratos com seus carrapatos e bactérias, foram conduzidos para o laboratório e por meio de edição de DNA, os cientistas criaram uma variação genética do animal que o torna refratário à contaminação pela bactéria. Assim o carrapato não se contamina ao picar o rato e, portanto, não consegue contaminar o ser humano. Colocado em grandes quantidades em um habitat restrito (uma ilha), a nova variante imune de ratos deve, em breve, sobrepujar a variante que se contamina com a bactéria, levando este grupo (e a doença) à extinção nesta área.

Outros cientistas têm usado a edição de DNA aleatoriamente em células cancerosas em laboratório para saber o que acontece quando certos genes são mutados. A rapidez de aquisição sobre o papel de cada gene no câncer vai receber uma aceleração exponencial nos próximos meses com o uso desta técnica.

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Finalmente, cientistas chineses estão modificando embriões para criar traços genéticos específicos. Você quer um bebê com genes parecidos aos do George Clooney, do Usain Bolt, do Einstein ou da Angela Merckel (os exemplos são meus, apenas pessoas que admiro muito)? Os cientistas chineses, no fundo, não prometem menos que isso…

Vamos deixar de lado todos os riscos ambientais que representam a extinção de uma cadeia ecológica envolvendo ratos e carrapatos, ou mesmo de mosquitos anofelinos, ou mesmo que tipo de monstruosidade poderíamos gerar ao editarmos genes para traços físicos ou intelectuais em um embrião humano. Mas vamos voltar à história dramática de Brian Madeaux.

A técnica de edição de DNA utilizada nele não foi exatamente CRISPR/Cas, mas tem um princípio parecido (para os curiosos, o laboratório da Califórnia que preparou o sistema de edição se utilizou de um modelo chamado de Safe Harbor (Porto Seguro) que envolve o promotor poderosíssimo do gene da albumina ligado a um tipo de tesoura diferente da Cas, as nucleases em dedos de zinco ou zinc finger nucleases).

O sistema de edição (obra de uma engenharia complicadíssima) é injetado no paciente dentro de um vírus modificado que não vai causar doença em seres humanos. O vírus se dirige para as células do fígado onde vai se albergar e o DNA destas células será editado para receber a copia normal do gene que falta em Brian.

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Espera-se que este gene novo produza uma quantidade suficiente da enzima que Brian não consegue sintetizar e que o efeito de uma única injeção dure por muitos anos. Se a estratégia funcionar, várias outras doenças genéticas entram imediatamente na lista de candidatas, como por exemplo, a hemofilias.

Quanto a doenças como AIDS, Alzheimer e câncer, quando dominarmos melhor a técnica de edição de DNA (e eu aposto que será em poucos anos) o futuro é promissor, senão em termos de cura, mas pelo menos de controle a longo prazo.

Brian, você tem 7 bilhões de torcedores neste momento.

 

(Arte/VEJA)

 

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