Bolsonaro só tem fígado, Renan não tem
Campanha sob permanente tensão institucional é risco para um governo fragilizado no descontrole da pandemia, sem vacina e que perdeu o mando no orçamento
Em três décadas Jair Bolsonaro aprendeu a fazer política com um único órgão, o fígado. Na presidência está descobrindo que não é suficiente, porque escolheu adversários que, simplesmente, não têm fígado.
Alguns estão na CPI da Pandemia, seu novo motivo de insônia. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) se destaca entre esses pelo mais longo histórico na habilidade de não usar o fígado em jogos do poder.
Exemplo: na última quinta-feira. Renan, relator da CPI, ouviu pacientemente uma hora de evasivas do ministro da Saúde Marcelo Queiroga. Não mostrou preocupação com nada além do registro público dos atos e manifestações de Bolsonaro.
Foi assim: “Ministro, faço questão de citar, entre aspas, a declaração mais célebre do presidente da República sobre a vacina da Pfizer, que seria cômica se não fosse tão nociva e verdadeiramente antipedagógica: “Se você virar um jacaré, problema seu. Se você virar o super-homem, se nascer barba em alguma mulher e o homem começar a falar fino…”
“Pergunto, ministro”— continuou — “qual foi o impacto desse posicionamento do presidente em relação à vacinação? Não foi pontual. Eu tenho aqui cem frases horrorosas nessa direção. Não sei qual é a mais horrorosa.”
Bolsonaro acusou o golpe. “Prezado senador, frase não mata ninguém. O que mata é desvio de recurso público, que o teu Estado desviou”— disse naquela tarde, durante na sua sessão semanal de video para redes sociais. E anunciou: “Então, vamos investigar o teu filho [Renan, governador de Alagoas] que a gente resolve o teu problema. Desvio mata, frase não mata.”
A CPI continuava com perguntas de outros senadores ao ministro da Saúde. O relator Renan interrompeu: “Esta Comissão Parlamentar de Inquérito foi novamente atacada pelo excelentíssimo senhor presidente da República…” Leu o que disse Bolsoraro, e completou: “Eu queria dizer, com todo o respeito ao presidente, que o que mata é a pandemia, pela inação e inépcia, que eu torço não seja dele. Com relação ao Estado de Alagoas, ele não gaste o seu tempo ociosamente, como tem gasto o seu tempo, enquanto os brasileiros continuam morrendo.”
Na manhã seguinte, sexta-feira, Marcelo Queiroga entrou no prédio do Ministério da Saúde e assinou portaria determinando auditoria nas transferências de dinheiro a governadores e prefeitos. Especificou os fundos, veículos de repasse, para abranger recursos relativos à emergência sanitária da Covid-19. Confirmou a tática governamental de confrontar diretamente integrantes da CPI que tenham vínculos, por parentesco ou afinidade política, com governadores e prefeitos ameaçados de investigação por suposta corrupção, não importa se existam provas ou indícios.
O ministro da Saúde foi o terceiro em iniciativas do gênero. Quando a CPI começou, a Procuradoria-Geral da República, comandada por Augusto Aras, anunciou investigação similar. Na sequência, o ministro da Justiça, Anderson Torres, comentou em entrevista aos repórteres Hugo Marques e Laryssa Borges, de Veja, um plano de mobilizar a Polícia Federal nessa direção.
Os ministros da Saúde, da Justiça e o procurador-geral escolheram se expor alinhados a Bolsonaro, presidente-candidato à reeleição, cujo projeto eleitoral está circunscrito à manutenção de um estado permanente de tensão institucional.
É jogo político de alto risco. Principalmente, para um governo fragilizado no descontrole da pandemia (421 mil mortos, e aumentando), sem vacina para oferecer ao país e que perdeu o mando no orçamento, obrigando-se a consolidar maioria legislativa a partir de emendas parlamentares “secretas”.
Bolsonaro só faz política com o fígado. Parece acreditar que basta o uso desse órgão para governar.