“O Assassinato de Gianni Versace”: primeiro o horror, depois a tristeza
Darren Criss, de Glee, tem um desempenho atordoante como Andrew Cunanan, o assassino em quem a série concentra todo o seu foco
Gianni Versace (Edgar Ramírez) acorda num dia de sol na sua mansão-ostentação em Miami, toma café da manhã no pátio, sai de bermuda para comprar revistas na banca – e na volta, ao pôr a chave no portão, leva vários tiros do rapaz que andava rondando por ali de forma errática e ansiosa. O estilista morre no auge da fama, sangrando nos degraus de sua casa, socorrido tarde demais pelo namorado, Antonio D’Amico (Ricky Martin). Desse drama operístico, o espectador possivelmente já conhece o enredo, ainda que só de ouvido, e talvez por isso o primeiro episódio de American Crime Story: O Assassinato de Gianni Versace não “agarre” de cara. Mas não desista, e insista: é no assassino, Andrew Cunanan, que a série concentra o seu interesse – um interesse vivo, intenso, que o ator Darren Criss faz por merecer com um desempenho acachapante (se série de TV entrasse no Oscar, os outros candidatos que se cuidassem). Darren Criss foi do elenco de Glee, também criado pelo todo-poderoso Ryan Murphy, e tem grande semelhança física com Cunanan. Tem também, de início, aquele jeito meio pão-de-forma de rapaz educado e não imediatamente memorável, o que é um tremendo bônus: Cunanan tinha imenso rancor da maneira como era subestimado e, ao mesmo tempo, tirava proveito de sê-lo. Era um sujeito extremamente volátil, mas escolhia o momento no qual lhe convinha revelar essa instabilidade.
No dia do assassinato de Versace, 15 de julho de 1997, Cunanan estava a pouco mais de um mês completar 28 anos. Sua vida não é muito conhecida, e vem cheia de zonas obscuras (o que se intui delas é terrível). Versace deu a ele a fama que, em parte, ele procurava com o assassinato. Mas o estilista não foi sua única vítima: foi o quinto homem que ele assassinou em um intervalo de umas poucas semanas. Por algum motivo, Cunanan cruzou uma linha e não achou mais o caminho de volta. Nem o procurou, na verdade. Ryan Murphy reconstitui seu protagonista em uma chave próxima do delírio: Cunanan estava numa “nóia” provocada não por alguma droga, mas pelo barato de matar com extrema violência e/ou longa tortura psicológica. A sensação é de que ele estava ora anulando, ora incorporando suas vítimas. Eis aí o que torna tão fascinante: Cunanan devora ou excreta os aspectos simbólicos dos homens que mata como uma maneira de se preencher ou de conhecer a si mesmo, porque não tem a menor ideia de quem seja na verdade. A série – e, por extensão, o espectador – vai tentar juntar os pedaços e formar o mosaico de sua identidade junto com ele. E é perturbadora, às vezes insuportável, a sensação de entrar na desorientação de Cunanan e, de certa forma, de tornar-se cúmplice dele.
Para cumprir essa missão, O Assassinato segue uma estrutura interessante: começa pela morte de Versace, recua dois passos e avança um; recua mais três, avança outro – e assim vai. No oitavo episódio, chega-se afinal ao início mesmo da história, com a infância de Cunanan. E, no episódio seguinte, o último da temporada, vê-se o que aconteceu depois do assassinato que dá título à série. Ryan Murphy, de Glee e American Horror Story, é excelente narrador, e não está tentando confundir o público com esse vai-e-volta. Está tentando recompor Cunanan da forma como ele teria sido investigado: começando, primeiro, pelos aspectos factuais ou superficiais – jovem, gay, oportunista, mentiroso compulsivo. Depois, focalizando um assassinato de cada vez e retrocedendo nele, para ver como Cunanan chegou ali. A diferença é que a série não se satisfaz com os aspectos factuais, como faria uma investigação policial: Murphy tem o desejo intenso de mergulhar no personagem em cada oportunidade, e usar o que descobriu até ali para avançar adiante, e então entender mais.
Murphy usa a mesma estrutura para recompor também as vítimas, porque quem elas são e por que foram escolhidas diz muito sobre o homem que as assassinou – e porque torna terrivelmente dolorosa a perda tão fútil e abrupta dessas vidas em particular. À exceção de um homem que teve o azar de estar no lugar errado, Cunanan assassinou dois jovens de quem era muito próximo: tinha sido grande amigo de um deles e estava apaixonado pelo outro. Matou também um homem idoso e milionário com quem tivera encontros pagos. Uma vítima casual, três que ocultavam sua homossexualidade de quase todo mundo e uma outra – Gianni Versace – que assumira ser gay com muita repercussão, dois anos antes, numa entrevista à revista The Advocate. Mas por quê?
À medida que O Assassinato recuava e avançava, explorando as possíveis respostas, Darren Criss foi me horrorizando e também partindo meu coração com sua personificação de Cunanan. Tanto quanto a violência dele, me chocou a sua incapacidade de desistir de suas mentiras e invenções: sua loucura já era mesmo sem remédio. Mas, quanto mais Darren Criss revela do desespero que está por trás dessas mentiras, da necessidade delas como uma última tábua de salvação e uma última ligação com a sanidade (e não posso imaginar como deve ser difícil a um ator se jogar assim, com tanta bravura, em um personagem como esse), mais penalizante se torna a trajetória de Cunanan. A loucura com frequência nasce dentro da família, e vê-se que a de Andrew Cunanan, filho de uma ítalo-americana e de um imigrante filipino, era disfuncional de formas extremas e verdadeiramente patológicas: um misto tenebroso de abuso de um lado e de negação do outro, de culto à pessoa combinado à destruição da personalidade. Cunanan nunca teve a menor chance. Nem ele, nem suas vítimas: foram todos tornados vulneráveis por serem obrigados a carregarem a si mesmos aos pedaços, e em segredo.