Adeus às armas.
Dos cineastas franceses em atividade, há três que eu acompanho com prazer especial: François Ozon (de Sob a Areia e Dentro da Casa), Olivier Assayas (de Horas de Verão e Acima das Nuvens) e Jacques Audiard, de O Profeta, Ferrugem e Osso e agora este Dheepan, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes este ano.
Particularmente desde o estupendo O Profeta, de 2009, Jacques Audiard tem se concentrado em personagens que são violentamente arrancados da vida que conhecem e jogados com violência igual ou ainda maior em uma outra vida, à qual têm de se adaptar rapidamente se não quiserem ser tragados por ela. Em O Profeta, o rapaz interpretado por Tahar Rahim, analfabeto e tímido, se descobria muito mais capaz do que jamais imaginara depois de passar por um episódio brutal na prisão. Em Ferrugem e Osso, de 2012, Marion Cotillard tinha de reorganizar todo seu senso de identidade após perder as duas pernas. Em Dheepan de novo estão em jogo esses aspectos, sobrevivência e identidade.
Em alguns breves minutos, com o máximo de economia, Audiard apresenta os personagens centrais: Dheepan (Antonythasan Jesuthasan) é visto na selva do Sri Lanka, queimando os cadáveres de companheiros do grupo guerrilheiro Tigres de Tamil e jogando seu próprio uniforme ao fogo; a guerra civil, para ele, acabou – ou essa guerra ao menos. Em um campo de refugiados onde membros da minoria tamil, como ela própria, esperam uma chance de deixar o país, a jovem Yalini (Kalieaswari Srinivasan) procura alguma menina sem pai ou mãe que aparente ter 9 anos de idade. Acaba encontrando Illayaal (Claudine Vinasithamby). Explica-se a exigência tão específica: embora não se conheçam até esse momento, Dheepan, Yalini e Illayaal vão usar os passaportes de uma família morta para deixar o Sri Lanka rumo à França, passando por um casal com sua filha.
Na periferia de Paris, Dheepan trabalha como zelador em um conjunto habitacional dominado por gangues, Yalini cuida de um apartamento frequentado pelo traficante que manda no pedaço, Illayaal tenta se ajustar à escola. Dentro de casa, a sós, os três executam uma coreografia complicada, ora cumprindo seus papeis forjados de marido, mulher e filha, ora rejeitando-os – mas é tão inóspito e diferente esse mundo novo, tão palpável a violência do lugar em que eles foram morar, que esse impulso, o de se unirem em torno uns dos outros e fazer com que a invenção se torne realidade, é quase sempre mais forte.
Trabalhando com o belíssimo roteiro de Noé Debré e Thomas Biegain, Jacques Audiard registra de maneira impressionista não só os fluxos do relacionamento entre os três e suas sensações diante da nova vida, como também o transe de violência em que, no clímax do filme, Dheepan vai se envolver. Jesuthasan é, da mesma forma que Tahar Rahim e Marion Cotillard, um desses atores em cuja fisionomia a história inteira está estampada – e é também mais do que um ator. Hoje escritor e ativista, Jesuthasan foi recrutado, na infância, como soldado-mirim pelos Tigres de Tamil, e só aos 19 anos conseguiu escapar da guerrilha.
Audiard usa aqui uma fervura mais lenta, digamos assim, do que em O Profeta ou Ferrugem e Osso, mas vale a pena dar a Dheepan a chance de se desdobrar e envolver. Como em quase todos os outros filmes de Audiard, também, o tratamento que a França dá aos imigrantes é um tópico central: quanto mais os empurra para os subempregos e os amontoa nas periferias, mais a França semeia tempestade – e no entanto persiste na sua política. Audiard faz questão de mostrar que há outros caminhos. No desfecho, do outro lado do Canal da Mancha, onde o estado tenta reduzir o atrito da imigração ao invés de alimentá-lo, Dheepan finalmente pode andar na mão contrária do seu destino.
Trailer
DHEEPAN – O REFÚGIO(Dheepan)França, 2015Direção: Jacques AudiardCom Antonythasan Jesuthasan, Kalieaswari Srinivasan, Claudine Vinasithamby, Vincent Rothiers, Marc Zinga, Faouzi BensaïdiDistribuição: Califórnia Filmes