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Por Coluna
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Jura que você nunca viu… “Curtindo a Vida Adoidado”?

Por que esse filme despretensioso é uma obra-prima que não envelhece e não perde o encanto – e que entende como só ela comédia e a tragédia da adolescência

Por Isabela Boscov Atualizado em 30 out 2019, 21h14 - Publicado em 30 out 2019, 20h43

Ferris Bueller acorda já com a ideia pronta: vai faltar à escola em grande estilo. Dali a dois meses, ele e o amigo Cameron Fry terminam o segundo grau e irão para faculdades diferentes; sua namorada, Sloane, ainda vai ter um ano de colégio pela frente. Dia de viver a vida, portanto. Ferris é o xodó dos seus pais – mas não da sua irmã, que morre de inveja dele e vai fazer o que puder para atrapalhá-lo – e sabe como convencê-los de que está doente (ele dá ao espectador uma lista de instruções, caso lhe interesse). Enquanto convence o deprimido Cameron a sair da cama e ir buscá-lo, Ferris faz preparativos elaborados para que sua ausência de casa não seja notada e sua falta na escola não seja desmascarada como a pilantragem que é – porque o diretor, Ed Rooney, odeia o popularíssimo Ferris (Jeffrey Jones interpreta Rooney com um compromisso comovente com este personagem tão panaca, rancoroso – e desastrado). A cereja no bolo: uma Ferrari 1961 vermelha conversível que é a dona do coração do pai de Cameron (de quem ele morre de medo), e que o intrépido Ferris decide pôr para rodar (total de quilômetros no odômetro: 258!). Se até aí já estava tudo uma maravilha, agora é que vai ficar bom de verdade. Ferris, Cameron e Sloane vivem um dia para lembrar para o resto da vida em Chicago: no restaurante esnobe, no museu repleto de obras de arte de chorar, no caos da Bolsa de Valores, no estádio de beisebol e em uma parada de rua que é uma apoteose e um momento verdadeiramente antológico do cinema. Não é que eu não soubesse tudo de cor, porque já vi Curtindo a Vida Adoidado, que está disponível na Netflix, umas dez vezes desde que ele estreou, em 1986. Mas e se a memória estivesse me traindo e o filme de alguma forma parecesse agora menos mágico do que nas ocasiões anteriores? E se desde a minha última visita ele tivesse envelhecido? Ora, que bobagem: fui lá, à décima-primeira revisão, e estava tudo como eu havia deixado – perfeito, sublime, transcendental.

Curtindo a Vida Adoidado
(Paramount/Divulgação)

Na verdade, não há momento em Curtindo a Vida Adoidado que não seja antológico: o diretor e roteirista John Hughes, rei do filme adolescente dos anos 80, consegue transformar até uma chamada de presença na sala de aula em algo inesquecível. Hughes, que morreu há dez anos, aos 59 anos, tinha também um olho formidável para escalar atores jovens. Ferris é, por exemplo, o papel da vida de Matthew Broderick – que tinha 24 anos quando o fez. Broderick consegue o impossível aqui: parecer de uma autoconfiança inabalável, mas sem arrogância; dar um nó em todo mundo, mas sem traço de maldade, sacanagem ou desprezo; sair de qualquer saia-justa, sem que nunca se duvide de que ele seria capaz de fazê-lo. É cool de A a Z, mas não é exibido nem convencido. E ainda irradia simpatia, inteligência e uma malandragem benigna e salutar. (Às vezes, ele é menos esperto do que pensa, como provam os dois funcionários de um estacionamento.) Quando ele se vira para falar com o espectador, a gente se sente lisonjeado; Ferris jogou aquela luz solar dele para o seu lado, e você agradece. Também Cameron é o papel da vida de Alan Ruck, um ótimo ator que agora está fazendo outro sujeito anulado pelo pai, na série Succession. E Mia Sara, que se retirou do cinema bem cedo, é uma graça no filme – realmente uma alma gêmea de Ferris.

Curtindo a Vida Adoidado
(Paramount/Divulgação)

A razão pela qual o filme sobrevive tão bem, mas tão bem mesmo, é que não há cena, por mais breve que seja, à qual Hughes não tenha dispensado imensa atenção. Cada tomada foi escrita a bico de pena: o menino dormindo de babar na aula? Dura cinco segundos, e é uma cena clássica. Eu poderia citar mais dezenas delas, mas o melhor é ver e conferir por conta própria. (Um aviso: Curtindo tem a melhor cena pós-créditos da história, que Ryan Reynolds fez questão de homenagear em Deadpool 2.) Outra razão para este ser um filme tão apreciado é que Ferris é aquela pessoa que qualquer um gostaria de ser: o sujeito que nasceu virado para a Lua e é querido por todos (à exceção de Rooney e da sua irmã), de bem com a vida, sempre disposto, sempre curioso, pronto a aproveitar cada momento e topar qualquer parada. Ferris é, inclusive, a pessoa que John Hughes gostaria de ter sido: roteirista de sucesso estrondoso (Esqueceram de Mim, Férias Frustradas, A Garota de Rosa-Shocking) e também diretor dos clássicos Gatinhas e Gatões, Clube dos Cinco e Antes Só do que Mal Acompanhado, Hughes era um cara retraído, sério, angustiado. A certa altura, passou a trabalhar praticamente em reclusão. Não queria dar entrevistas, não falava com ninguém que não fosse próximo, evitava que o fotografassem. Quem ocupa o lugar de Hughes em Curtindo a Vida Adoidado não é Ferris; é Cameron, o garoto que tem o coração em carne viva e sente para sempre cada dor, cada constrangimento, cada sensação de fracasso. E por isso, por lembrar de tudo e ser capaz de sentir de novo, Hughes soube traduzir como ninguém a tragédia e a comédia da adolescência.

ALGUMAS CURIOSIDADES:

  • John Hughes tinha o dom de escolher a trilha sonora. Aqui, ela vai do tema de Jeannie É um Gênio e da cafona (mas muito boa) Danke Schoen até Oh Yeah, uma brincadeira do Yello, e a deliciosamente grudenta Love Missile F1-11, do Sigue Sigue Sputnik – além da linda Please Please Please Let Me Get What I Want, do Dream Academy, e de Twist and Shout, dos Betales. Nunca é menos do que infalível.
  • Please Please Please, aliás, embala uma das cenas mais bonitas do filme, em que o trio visita o Art Institute of Chicago e vê quadros de Edward Hopper, Paul Gauguin, Pablo Picasso, Jackson Pollock, Amedeo Modigliani, Mary Cassatt, Alberto Giacometti e Wassily Kandinski, enquanto Cameron se perde – ou talvez se encontre – no imenso e fascinante Uma Tarde de Domingo na Ilha de La Grande Jatte, do pontilhista George Seurat. Todas eram obras de significado especial para John Hughes.
  • A Ben Rose House, um ícone modernista de 1953 do americano James Speyer (discípulo do deus da arquitetura Mies van der Rohe), “interpreta” a casa de Cameron. A caixa de vidro em que a Ferrari vermelha mora é o pavilhão que completa o conjunto, projetado por David Haid em 1974.
CURTINDO A VIDA ADOIDADO
(Ferris Bueller’s Day Off)
Estados Unidos, 1986
Direção: John Hughes
Com Matthew Broderick, Alan Ruck, Mia Sara, Jeffrey Jones, Jennifer Grey, Cindy Pickett, Lyman Ward, Edie McClurg, Charlie Sheen, Ben Stein
Onde assistir: na Netflix e na iTunes Store

 

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