“Cargo” e mais 6 apocalipses zumbi na Netflix
Da estreia estrelada por Martin Freeman a um sensacional drama coreano e uma série escrachada do SyFy, os mortos-vivos rendem um programão
Um apocalipse zumbi estrelado por Martin Freeman e passado na aridez do sertão australiano? Assisti a Cargo no dia em que ele entrou na grade da Netflix, na sexta-feira 18 de maio. Não chegou a corresponder totalmente às minhas expectativas: os diretores estreantes Ben Howling e Yolanda Ramke ganharam a chance de fazer este longa como uma expansão de um curta-metragem matador de 2013, mas o ritmo do formato mais extenso se prova um desafio para eles. Note, porém, que eu disse que não correspondeu totalmente ao que esperava – há muita coisa interessante aqui para garantir uma ótima noite de tensão. Pegos de surpresa pela epidemia, Freeman e sua mulher (Susie Porter) protegem-se descendo de barco um rio do outback. Suas provisões estão escasseando; é preciso planejar um próximo passo que assegure a sobrevivência da filha de colo deles. Mais do que os zumbis, importa aqui a ambientação na Austrália, onde a longa e vigorosa tradição do filme apocalíptico vem entrelaçada à história violenta do país – o início como colônia de degredados, o extermínio sistemático dos aborígenes e da sua cultura, a natureza hostil, o isolamento geográfico, a exploração não raro descontrolada dos recursos da terra. Como no coreano Invasão Zumbi, o desejo de um pai de proteger sua filha (ou filhas, a partir do momento em que a garota aborígene Thoomi entra na história) é o coração tocante da trama.
Salve-se quem puder: Invasão Zumbi (Train to Busan, 2016)
Ainda que o título pareça autoexplicativo e a ação seja ininterrupta (além de eximiamente concebida), os mortos-vivos não são o centro do filme do diretor Sang-ho Yeon: desde o momento em que a epidemia de zumbis eclode até a última cena, o que está em questão são as exceções que os personagens abrem (ou não) para si mesmos na premência de escapar da fome bestial dos metamorfoseados. Yeon vai além: se sobreviver exige acovardar-se, proteger-se na indiferença ou mesmo abandonar os semelhantes, então o sobrevivente não poderá se acreditar muito mais humano que os zumbis. Esse é o teste a que é submetido o jovem financista Seok (Yoo Gong). Ainda no carro, rumo à estação ferroviária, ele e a filha pequena, Soo-an (Soo-an Kim), percebem uma certa agitação em Seul. Mas só dentro do trem, no trajeto até a cidade de Busan, eles se darão conta da calamidade: um após o outro, passageiros e tripulantes vão se transformando e instaurando o pânico nos vagões. Seok é um pai distante; trabalha muito, convive pouco e está levando Soo-an para Busan apenas para largá-la na casa da ex-mulher. O desespero faz o amor paterno aflorar com violência. Mas a menina não quer ser salva a qualquer custo: quer que o pai ajude outros além dela, porque precisa que ele prove ser o homem que ela imagina. A aflição não dá trégua, o arrependimento é constante. E o horror, esse está não só nos mortos-vivos repugnantes, mas sobretudo na facilidade com que o medo transforma gente em bicho.
Terror geopolítico: Guerra Mundial Z (World War Z, 2013)
A filmagem foi, em si, apocalíptica: disputas entre as companhias produtoras, roteiristas demitidos, burradas logísticas, brigas entre Brad Pitt e o diretor Marc Forster e desavenças até sobre que tipo de filme Guerra Mundial Z deveria ser: terror? ação? thriller geopolítico? O final, rodado a alto custo em Budapeste, foi inteiro jogado fora e substituído por outro, bolado por um “comitê de salvamento” (a única parte fraca). Tanto atrito só depurou este misto tenso – muitas vezes arrepiante – de terror e thriller. (Um dia, há de ficar melhor ainda: apesar dos adiamentos, dá-se como certo que David Fincher vai dirigir a continuação.) Brad Pitt é Gerry Lane, ex-analista de campo da ONU que resolveu virar simples pai de família em Filadélfia. Parados no trânsito, a caminho da escola, Gerry, sua mulher (Mireille Enos) e as duas filhas pequenas mal têm tempo de registrar os sinais – uma correria, um pânico súbito – de algo anormal: em segundos, pessoas de olhos esgazeados estão arrancando os passageiros de dentro dos carros, lançando-se de cabeça contra os para-brisas para arrebentá-los, mordendo aqueles que conseguem agarrar e transformando-os também, instantaneamente, em criaturas de agressividade incontrolável. Da fuga de Filadélfia para o abrigo em navios, e destes para a Coreia do Sul e Jerusalém – esta, uma sequência espetacular –, Guerra Mundial Z combina o terror puro e simples (e a maneira animalesca como os zumbis se movem, cooperando como uma colônia de insetos) com pinceladas de reflexão geopolítica. De quebra, surpreende com uma inversão: em vez de fazer a ação escalar até o bombástico, encerra-a com uma sequência quase silenciosa, num ambiente fechado e vazio, no qual meia dúzia de personagens tenta passar despercebida de um punhado de zumbis.
A vingança do nerd: Zumbilândia (Zombieland, 2010)
O senso comum sugere que, em caso de hecatombe, os mais brutais e indiferentes seriam os mais aptos a resistir. Zumbilândia revê essa noção. Quem narra a história aqui é Columbus (Jesse Eisenberg): franzino, tímido e cheio de fobias, ele sobrevive já há uns dois meses à peste deflagrada por um hambúrguer contaminado exatamente por ser tão neurótico. Primeiro, sempre achou os seres humanos estranhos, mesmo quando ainda não tinham virado zumbis, e está habituado à solidão. Suas paranoias e inaptidões, que tanto tolhiam sua vida, agora adquiriram um surpreendente valor prático. Nada mais útil, quando se está cercado de mortos-vivos, do que ter medo de germes e desconfiança de banheiros públicos e ser compulsivo nos detalhes: Columbus nunca é pego sem munição, comida, lanterna ou agasalho. Nunca acredita que matou mesmo um zumbi, e sempre dá um segundo tiro para garantir. Nunca deixa também de afivelar o cinto de segurança: é o jeito certo de ejetar zumbis escondidos no banco traseiro sem se espatifar junto com eles no para-brisa. O diretor Ruben Fleischer tinha aqui aquele apetite inconfundível dos estreantes (os de talento, claro): é original na história, criativo no visual, escrachado na sangueira e sentimental em relação ao seu herói, que está ali para exaltar as melhores qualidades dos adolescentes socialmente desastrados. Quando Columbus encontra pelo caminho o caipira Tallahassee (Woody Harrelson, divertindo-se muito), Zumbilândia quase derrapa para a trilha batida dos filmes sobre duplas desajustadas. Mas, depois das animosidades de praxe entre os dois personagens, sai-se com um caso de admiração mútua e compreensão irrestrita. Completam o deleite a despachada Wichita (Emma Stone) e sua irmã caçuça (Abigail Breslin) e uma ponta maravilhosa de Bill Murray.
Vivos contra vivos: A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1990)
Em 1968, o mestre do cinema “B” George A. Romero inventou o filme de zumbi moderno com todas as características que persistem até hoje – da crítica sociológica (ao consumismo, à alienação etc.) até a fisiologia (destruir seu cérebro é a única maneira de matá-los). Neste remake dirigido por Tom Savini, que por muito tempo foi o responsável pela maquiagem nos filmes de Romero, novamente os sobreviventes de uma epidemia inexplicável, que traz os mortos de volta numa paródia de vida, se entrincheiram numa fazenda. Quando eles descobrem outro grupo de sobreviventes escondido no porão, começa uma disputa de poder até mais perigosa e letal que aquela travada com os zumbis. Savini refaz o roteiro de Romero tintim por tintim (agora em cores, não mais em branco e preto), mas falta-lhe o gênio do seu mentor para arrepiar, chocar e aterrorizar. Entra na lista só para encorajar o espectador a procurar o original de 1968 (que não está disponível na Netflix).
Corram para o shopping: Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, 2004)
Antes de Zack Snyder fazer 300, Watchmen, Sucker Punch e então assumir as rédeas do universo DC, ele se graduou da publicidade e dos videoclipes para o cinema com esta refeitura do clássico de 1978 de George A. Romero (que é uma continuação, aliás, do A Noite dos Mortos-Vivos de 1968). Mais calcado na ação e menos intenso no comentário social que o original de Romero, é satisfação garantida para quem gosta do apocalipse zumbi servido com doses generosas de sangue, nojeira e violência explícita – mas entrega o que promete, é muito hábil nas marcações do ritmo e o bom elenco é um bônus. Sarah Polley, Ving Rhames, Mekhi Phifer, Ty Burrell e Jake Weber são alguns dos sobreviventes da epidemia que se alastra quase que instantaneamente por Milwaukee, Wisconsin, no Meio-Oeste americano, produzindo zumbis rápidos e ágeis, ainda que não necessariamente espertos (bater a cabeça continuamente em portas de vidro é um dos passatempos favoritos deles). Refugiado em um shopping center, condenado a ouvir muzak nos alto-falantes e tendo de conter o entusiasmo de um segurança bronco (Michael Kelly), o grupo precisa se entender consigo mesmo e bolar uma estratégia de fuga – no que, talvez, o sujeito isolado no telhado de uma loja de armas logo em frente possa ajudar.
Menção honrosa
Sorria, é o apocalipse: Z Nation (2014-)
Às vezes, aquele padrão de produção meio fajuto do SyFy é exatamente o que uma série precisa – em especial uma série como Z Nation, que nasceu para esculhambar. É assim: três anos após o início do apocalipse zumbi, com os Estados Unidos já reduzidos a escombros, um grupo de sobreviventes se impõe a missão de atravessar o país para levar até um laboratório na Califórnia (que talvez ainda exista, talvez não mais) o único sujeito a jamais sobreviver a mordidas de zumbis e continuar humano – o trapaceiro, oportunista, folgado, mau-caráter e mal-agradecido Murphy (Keith Allan). Alguns entram nessa por sentido de dever, como os líderes do grupo, os sargentos Charles Garnett (Tom Everett Scott) e Roberta Warren (Kellita Smith). Outros, porque é mais saudável fazer parte de um bando do que andar sozinho por aí – caso dos amigos/ficantes Addy e (Anastasia Baranova) e Mack (Michael Welch). O hippie velhão Doc (Russell Hodgkinson) vai porque sei lá, rolou. A badass Cassandra (Pisay Pao) por causa disso, porque é uma badass. E o adolescente 10K (Nat Zang), porque quer aplicar sua pontaria excepcional à tarefa de eliminar 10 000 zumbis – daí seu apelido. Para se guiar pelos milhares de quilômetros de terra arrasada, eles se comunicam por rádio com o Cidadão Z (DJ Qualls), um soldado da Agência de Segurança Nacional que ficou extraviado numa base no Ártico, com acesso aos satélites que ainda estão operacionais.
No começo, Z Nation ainda é uma série meio indecisa; quer ser uma versão barata do drama de The Walking Dead, com um pé no humor negro. À medida que os episódios avançam, porém, ela vai firmando suas opções, todas elas corretas: decide ser um road movie (ou uma road series), com novos personagens e desafios a cada parada na estrada; adere de vez ao escracho; tem ação até bem decente, e zumbis assombrosamente repelentes, além de rapidinhos. E os personagens são muito melhores do que esperaria, em boa parte porque foram entregues a atores que, está na cara, não são os primeiros na lista de ninguém, e querem tirar o máximo proveito desta oportunidade. Quanto mais os showrunners deixam o elenco livre para se divertir, melhor a coisa fica. Da segunda temporada em diante, então (há quatro disponíveis na Netflix), Z Nation enfia o pé na jaca de vez: tem bebê zumbi, zumbis amish, zumbis caipiras, zumbis-plantas, zumbis presos numa roda de queijo (nem pergunte), strippers zumbis, uma versão zumbi dos Três Reis Magos e até um George R.R. Martin zumbi, que fica autografando sem parar exemplares de Game of Thrones e é interpretado por… o próprio George R.R. Martin (e isso é só o começo). É uma farra.