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Por Coluna
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“3%” e a paixão pelo palavrão

O excesso está em todo lugar, mas na série cult brasileira fica evidente como essa muleta pode tolher o potencial de um roteiro

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 Maio 2018, 19h57 - Publicado em 4 Maio 2018, 19h45

Eu adoraria propor um desafio aos roteiristas e atores de 3%: fazer um episódio inteiro sem usar um único palavrão. Nenhunzinho, nem o mais bobo, nem para remédio. Não acho, claro, que isso iria sanar os problemas dessa primeira – e, sim, valorosa – produção brasileira para a Netflix. Mas poderia ser uma boa estratégia para a equipe da série constatar onde os problemas estão situados, e quais são eles exatamente. 3% oferece muitos ganchos com os quais fisgar o espectador e então mantê-lo interessado, e seu roteiro desenha um movimento bastante interessante de episódio para episódio, e de temporada para temporada. A segunda temporada, que estreou em 27 de abril, de fato fez o enredo avançar do ponto em que havia sido deixado até um lugar imprevisto e instigante – mas, da maneira como os diálogos são (mal)tratados, é quase milagre que a série tenha percorrido um percurso tão longo.

3%
(Netflix/Divulgação)

Os diálogos de 3% são sistematicamente pobres: pobres de artesanato, de conteúdo, de função, de vocabulário. Já em palavrões, aí eles são riquíssimos. Houve episódios decisivos nesta segunda temporada em que boa parte dos diálogos era uma mera sequência de palavrões, de tal forma que os personagens soavam todos como bêbado sozinho em ponto de ônibus. Quando todo mundo fala do mesmo jeito, perde-se uma ferramenta importante de desenvolvimento de personagem. Quando todo mundo fala do mesmo jeito com palavrões, então, perde-se ainda mais: perde-se a precisão do vocabulário, que fica deste tamanhinho (some os mais frequentes– não dá nem dez palavras!). Um vocabulário pobre empobrece as ideias – e neste caso fico indecisa se as falas repetitivas e rudimentares de 3% servem para encobrir a salada mista de ideias da série, ou se na verdade impedem que as ideias se desenvolvam a contento. 3% tem bom público no Brasil, onde a produção de ficção científica é uma raridade, e virou item cult nos Estados Unidos, onde se produz muita ficção científica. Pessoalmente, acho que a série merece a repercussão que obteve: ela tem muito potencial e realiza uma parte considerável dele. Por isso mesmo – e porque eu a segui com interesse –, fiquei imaginando com que cara ficariam seus melhores episódios se os roteiristas e diretores abolissem os palavrões. Terminei o exercício com a certeza de que muito do que 3% tem de vago, mal equacionado ou repetitivo seria naturalmente identificado por seu time se este largasse essa muleta pelo caminho. Imaginei, em especial, uma atriz forte como Vaneza Oliveira, que faz a rebelde Joana, ganhando diálogos que aproveitassem sua inteligência e sua ótima modulação de voz. Seria uma beleza. Não conheço o trabalho anterior de todos os integrantes da equipe de produção. Mas, entre aqueles cujo trabalho conheço, como César Charlone (O Banheiro do Papa) e Philippe Barcinski (Não por Acaso, Entre Vales), tenho certeza absoluta de que eles tirariam de letra. (Se achassem que é o caso, obviamente. A série é deles e do restante do time, não minha.)

3%
(Netflix/Divulgação)

Em um roteiro, o palavrão bem aplicado pode adquirir grande riqueza narrativa – por exemplo, na célebre fala “Dadinho é o c*****o! Meu nome é Zé Pequeno”, de Cidade de Deus. Ou numa sequência virtuosística da série The Wire em que os personagens de Dominic West e Wendell Pierce investigam uma cena de crime e trocam informações decisivas usando apenas, em dezenas de intonações diferentes, a palavra “F**k”. Ou  no caso do “Motherf****r!” que, pelo brilhantismo com que Samuel L. Jackson o usou em Pulp Fiction, virou sua marca registrada desde então (e, apenas para deixar ainda mais claro que minha objeção aos palavrões nada tem a ver com gosto ou desgosto, anoto que Tarantino tem ouvido finíssimo para o palavrão; usa-o aos montes e em geral com primor.)

3%
(Netflix/Divulgação)

Há que saber como, quando, onde e com quem usar o palavrão para ele surtir efeito. Quantidade não ajuda, só atrapalha, porque o impacto se dissolve. Como faz parte do linguajar cotidiano de muita gente, também não transmite por si só nem raiva nem revolta, e nem muito menos é símbolo de transgressão. É ruim para enfatizar, porque frequentemente cria uma discórdia besta entre forma e sentido, entre forma e caráter ou entre forma e circunstância – como naquela frase que nunca faltava em filme brasileiro dos anos 70 (e que muita gente continua a utilizar até hoje, como se fosse incrível), o “Te amo, p***a!”. O que quer dizer isso, precisamente? Que o sujeito ama a moça e fica louco de ter que admitir? Que está furioso por ela ainda não ter percebido? Que preferia não amá-la? Que está aliviado por finalmente confessar seu amor? Nunca, em nenhuma das inúmeras ocasiões em que topei com essa frase num filme, a escrita ou a atuação foram capazes de indicar qual seria a opção correta em cada caso. Não prestou, enfim, e por isso fica besta.

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3%
(Netflix/Divulgação)

Um dos mais brilhantes roteiristas em atividade, o Aaron Sorkin de A Rede Social, Steve Jobs, The West Wing, The Newsroom etc. etc., acha que os palavrões ficaram tão comuns e gastos que não servem mais para nada – só para revelar a preguiça, a incompetência ou o equívoco dos roteiros que não sabem andar sem essa muleta. Pode assistir a qualquer trabalho de Sorkin e reparar: são raríssimos os palavrões. Quase sempre, inexistem. E são magistrais os seus diálogos. Vale notar, ainda, que nenhum personagem de Sorkin jamais teve dificuldade em expressar raiva, revolta, frustração, saturação ou qualquer outra nuance de sentimento por não dizer palavrões. Bem ao contrário.

 

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