Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Intervenção Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Jerônimo Teixeira
Crítica da cultura e cultura da crítica. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Um tiro no meio do concerto

Uma reflexão rápida, a partir da frase famosa de Stendhal, sobre as relações complicadas entre arte e política. E a declaração de princípios deste novo blog

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 abr 2017, 12h30 - Publicado em 7 abr 2017, 18h42

“Política, numa obra literária, é um tiro de pistola no meio de um concerto, algo grosseiro, do qual, entretanto, não é possível desviar a atenção.” A frase famosa aparece no quarto final de A Cartuxa de Parma, romanção que Stendhal escreveu em milagrosos 53 dias de 1838. Não se deve lê-la com ingenuidade: a tirada carrega certa dissimulação irônica. Um romance cujos episódios centrais estão relacionados às guerras napoleônicas – das quais o autor participou – terá, obrigatoriamente, uma razoável dose de política, o que se pode confirmar graças às facilidades da leitura eletrônica: uma busca rápida no texto on-line informa que a citação célebre corresponde à 26ª das 31 vezes em que a palavra “política” figura, como substantivo ou adjetivo, em A Cartuxa de Parma. Como bem observa o crítico americano Irving Howe em um estudo dedicado a grandes romances políticos, os “concertos” de Stendhal são “invariavelmente interrompidos por explosões de armas de fogo”.

Howe lamenta ainda que Stendhal tenha sido demasiado sucinto nessa consideração sobre literatura e política. O que acontece com a música, pergunta o crítico, depois do tiro? Eu perguntaria ainda pelo destino da bala: o dano que uma pistola pode causar, afinal, não se limita à interrupção de uma sinfonia. O adjetivo “grosseiro”, aliás, soa como um eufemismo. Pouco mais de um quarto de século depois de A Cartuxa de Parma, Abraham Lincoln foi morto por um tiro do ator John Wilkes Booth em um teatro de Washington. Caberia lamentar então a “grosseria” do assassino que interrompeu uma peça teatral?

No entanto, por força do contraste, o adjetivo eufemístico torna a analogia inusitada de Stendhal ainda mais eloquente. O escritor francês, afinal, não comparou a política aos ruídos menos extraordinários mas ainda assim perturbadores que se ouvem em salas de concerto: conversas, gritos, risadas (Stendhal teve a felicidade de jamais ouvir a grosseria mais habitual do século XXI: o celular). A política é um tiro: não só barulhenta, mas ameaçadora, brutal, violenta. O romance, gênero cuja ambição é abarcar toda a grosseira vulgaridade da vida, não pode deixar a política de fora; sua música, porém, luta para se fazer ouvir acima do estampido. (Incidentalmente, é curioso lembrar que uma derrota de Napoleão inspiraria, anos depois da morte de Stendhal, a Abertura 1812 – popular peça musical de Tchaikovsky que incorpora, entre suas tonitruâncias, tiros não de pistola, mas de canhão.)

Assassinato presidente Abraham Lincoln
John Wilkes Booth interrompe uma peça de teatro: que grosseria! (Imagem/Reprodução)

É uma lição preciosa para se guardar em dias nos quais a palavra de ordem é a politização de todas as coisas – não só da literatura, da música, da arte, mas também do carro e da bicicleta, das roupas, do comercial de cerveja, da decoração de festa infantil (e do corpo, e do sexo, sim, sobretudo do sexo!). Há, ninguém ignora, um sentido lato da palavra que permite qualificar qualquer interação humana, por mais comezinha que seja, de “política”. Mas o imperativo da politização não se contenta com essas generalidadades: ele exige que se tomem posições quando se toma um cafezinho e que se leiam manifestos quando se lê um poema. No debate público recente do Brasil, o buraco da bala está ainda mais abaixo: o critério último para avaliar qualquer coisa – um café ou um soneto – não são princípios, ideias, postulados da alta política, mas a adesão a uma seita, ou a conformidade ao Partido.

Deixo só um exemplo para tornar a conversa  menos abstrata: na década de 70, o exilado Ferreira Gullar era o poeta mais prezado pela esquerda, enquanto os poetas concretos eram tidos como “formalistas”  – alienados e alinhados, no seu entusiamo pelas influências da tecnologia e dos meios de comunicação de massa, ao “horizonte rebaixado e inglório do capital vitorioso” (a expressão foi empregada, há poucos anos, por um figurão da crítica literária marxista em um ensaio sobre um medalhão da MPB; ela não seria, porém, estranha nas décadas de 60 e 70). Nos dias de agonia do governo passado, porém, testemunhamos uma esquisita troca: o concreto Augusto de Campos, apoiador da mandatária impedida, ergueu-se como o poeta maior no panteão militante, enquanto Gullar, crítico do governo afastado, convertia-se na besta fera do elitismo reacionário. Nelson Ascher falou dessa inversão em um texto de homenagem a Gullar, publicado em VEJA quando da morte do poeta maranhense – e pontuou o fato essencial: aqueles que avaliam Augusto e Gullar pelas posições políticas conjunturais dos dois escritores não têm verdadeiro interesse por Viva Vaia ou por Poema Sujo.

Este blog que ora começa suas atividades é dedicado, como se lê acima, à crítica cultural e à cultura da crítica. Os temas que se abrem são quase ilimitados: arte, literatura, cinema, música, a dinâmica sempre cambiante da cultura de um tempo que talvez seja tão áspero e intratável mas não tão belo quanto o cacto do poema de Manuel Bandeira. Sim, os tiros são cada vez mais altos e frequentes, e o blogueiro não é surdo: vai falar também da barulheira, incluindo-se aí o bla-bla-bla incessante das redes sociais. Mas Intervenção pretende ouvir, antes de tudo, a música que a artilharia deseja abafar. A noção antiquada de que a cultura ainda tenha seu espaço autônomo – de que as músicas que nos comovem, as pinturas que nos transfiguram e os romances que nos definem sobrevivem em algum lugar não totalmente contaminado pela política mais mesquinha – essa noção talvez seja a mais ingênua das ilusões, mas é a ilusão que nos resta. Somos feitos da matéria dos sonhos, como diria o célebre mago (não Harry Potter: aquele outro, mais velho e mais antigo).

O leitor está convidado a se acomodar ao lado do blogueiro no grande teatro da cultura. Encostado à nuca, o cano da pistola incomoda, mas a cortina já se abre. Assistamos ao concerto.

 

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.