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Por Jerônimo Teixeira
Crítica da cultura e cultura da crítica. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
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Todos os animais são iguais. O artista é mais igual que os outros

Fernanda Montenegro diz que calar a arte - o "coração da sociedade" - é mais grave do que calar o pensamento. Liberdade de expressão não é mais universal?

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 21 dez 2017, 13h38 - Publicado em 24 nov 2017, 20h02

Fernanda Montenegro foi ameaçada de morte. Ainda que tenha sido mera bravata de quem covardemente aproveita o relativo anonimato das redes sociais para dar vazão a impulsos primitivos, uma ameaça à vida não é coisa para ser encarada com leviandade (aliás, é crime: artigo 147 do Código Penal). As agressões on-line foram detonadas por certas opiniões da atriz. Trata-se, portanto, de mais uma lamentável tentativa de cercear o livre pensamento.

Em Free Speech, guia minucioso e muito equilibrado sobre a liberdade de expressão e seus limites, o historiador inglês Timothy Garton Ash lista dez princípios básicos que deveriam reger a troca de ideias em um mundo integrado por novos meios tecnológicos. O segundo deles cabe com muita propriedade aqui: “Não faremos ameaças de violência e tampouco toleraremos intimidação violenta “. Não se deve permitir que a  violência ou a ameaça de violência cale uma ideia – nem, tampouco, que emperre a discussão crítica dessa ideia. Diz Garton Ash: “Apoiar a liberdade de expressão de uma pessoa não significa que devamos tratá-la como um gênio angelical. Nós devemos manter a liberdade de criticar as opiniões, a arte e a escrita daqueles que são vítimas de intimidação violenta, ao mesmo tempo em que defendemos seu direito de ‘dar seu recado’. A autocensura não é uma boa forma de apoiar a liberdade de expressão”.

Um bom modo de apoiar a liberdade de Fernanda Montenegro, portanto, é criticar o que ela diz.

 

***

A peça primeira que motivou os estúpidos ataques e ameaças à atriz foi o vídeo abaixo. Dona Fernanda (assim ela é identificada na legenda) surge em um cenário caseiro, informal: poltrona, abajur com plantinha no canto esquerdo, ao fundo, uma janela que se abre para a noite.  Dona Fernanda nem diz boa noite: já sai lendo seu texto. “Tudo é cultura, inclusive a cultura de repressão”, ela diz, em tom grave, quase soturno. Prossegue: “Mas só há uma cultura que realmente constrói um país: é a cultura da liberdade” (a palavra liberdade estende-se sutilmente, e a voz se eleva com emoção delicada: coisa de quem domina o ofício). Adiante, Fernanda Montenegro afirma que a cultura cria “a alma de uma nação”, e faz um alerta aos poucos políticos que podem estar do “nosso lado” mas que silenciam por covardia: se as coisas seguirem no rumo atual, até a pele deles corre risco. Não se apontam que acontecimentos tão sérios são esses que ameaçam a pele dos amantes da liberdade, mas, para quem leu jornais ou pelo menos entrou no Facebook nos últimos meses, estará claro que são pelo menos dois os episódios que fazem Fernanda Montenegro elevar sua bela voz: o cancelamento, sob pressão de manifestantes, da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, e os estrídulos protestos contra a presença de uma criança na performance La Bête, no MAM de São Paulo.

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Já deixei, em textos anteriores, minhas posições sobre o fechamento do Queermuseu e sobre o affair La Bête. Não fui ameaçado de morte, mas, nos comentários do blog, um caridoso cristão anunciou que, em minha longa queda para o inferno, vou gritar “Jerôôônimo”.  O mesmo comentarista viu meu claudicante desempenho no desativado Clube do Livro  e concluiu que sou gago (eu confesso: tenho uma tremenda inveja da perfeita empostação de Dona Fernanda). Devo agradecer ao simpático leitor pela distinção que me concede, embora eu não seja companhia digna para o escritor patrício famosamente atacado por ter “uma perturbação qualquer nos órgãos da fala”.

No ponto central, o jornalista condenado ao inferno está com a atriz ameaçada de morte: ambos contra a censura. Eu apenas não considero que o direito à livre expressão de um artista tenha primazia sobre o direito de outras categorias profissionais. Fernanda Montenegro terá uma visão diferente do tema – ou, pelo menos, é o que sugere seu emprego do pronome “nós”.

 

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É tantas vezes elusiva, a primeira pessoa plural… Quando Fernanda Montenegro exalta “nossa luta de sobrevivência cultural”, eu pergunto: quem são nós? (O solecismo é proposital, leitor normativo!) A resposta está em grandes letras amarelas no pé do vídeo: #342Artes. A hashtag identifica um grupo de artistas formado em torno da produtora Paula Lavigne, mulher de Caetano Veloso (já falei da turma antes).  A voz carregada de Fernanda Montenegro parece conjurar uma grande coletividade de artistas libertários em luta contra a “cultura da repressão”, mas desconfio que o grupo cabe todo no apartamento carioca do casal Lavigne.  Em um texto publicado em VEJA há algumas semanas (link para assinantes mais abaixo), apontei o caráter corporativo do #342Artes: a conversa lá em Ipanema é mais sobre a liberdade particular da turminha do que sobre o princípio universal da livre expressão.

A voz de Fernanda Montenegro até tenta evocar uma paisagem mais ampla. De sua janela missionária, ela avista o país ao longe, e seu olhar vai fundo: vê a “alma de uma nação”.  Retornamos a uma concepção de “arte nacional” que, com várias e coloridas roupagens, assombra há tempos a conversa média sobre cultura no Brasil. A ideia toma força no nosso primeiro romantismo, veste um duvidoso figurino indígena no romance de Alencar e na poesia de Gonçalves Dias,  ganha uma graça modernista com o herói sem caráter de  Mario e o antropófago de Oswald, atravessa os sertões no romance de 30 e desbunda na Tropicália. Sim, grandes momentos da arte, da literatura e do pensamento brasileiros foram inspirados pela miragem do “caráter nacional”. Mas esta antiquada pauta pode muito bem ser o cabresto do artista e os antolhos do crítico, como bem demonstram os equívocos de um Sílvio Romero (em especial, sua diatribe contra Machado de Assis, citada lá atrás, no quinto parágrafo).

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E por acaso a nação pediu ao artista que definisse a sua alma? Ora, os partidários daquilo que Fernanda Montenegro chama, por bons motivos, de “cultura da repressão” também vivem neste país (nem preciso dizer o que representa a letra do meio da sigla MBL). Com toda probabilidade, os brucutus que ameaçaram a atriz são igualmente brasileiros. Haverá quem diga que subsistem traços autoritários no nosso “caráter nacional”, ou que somos um povo por natureza moralista e conservador – portanto,  o protesto do ex-ator pornô na porta do museu encarnaria a “brasilidade” de modo mais legítimo e autêntico do que a performance do artista pelado no mesmo museu. Não, não aceito essa visão das coisas, e quero distância das turbas que tentam fechar exposições de arte ou impedir exibições de documentários. Mas tampouco reconheço “engenheiros da alma nacional” nas celebridades que fazem sarau-protesto na sala de Paula Lavigne. Admiro a obra de alguns membros do #342Artes – do marido de Paula inclusive, e também de Fernanda Montenegro, claro. Só que a minha alma condenada ao inferno não lhes pertence. Serei menos brasileiro por isso?

 

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(Para um artista brasileiro, será decerto mais fácil e natural falar de temas brasileiros. Mas daí à presunção de “criar a alma de uma nação” vai uma longa estrada. As nações têm mesmo alma? Fico pensando em um grande romance contemporâneo como Desonra. J.M. Coetzee é um escritor sul-africano contando uma história que se passa na África do Sul pós-apartheid. Sua arte literária, porém, não cabe na ideia convencional da “cultura que constrói uma nação”. O que se vê no livro é um país feio e fraturado, no qual um professor universitário caído em desgraça se choca com uma violência que ele não provocou e que ele não é capaz de entender. Se existe alma nacional em Desonra, será uma alma perdida.

No Brasil, Drummond, chegando à cena literária depois dos arroubos tupis do primeiro modernismo, também parece ter perdido a nação na noite da alma. Versos de Também já Fui Brasileiro:

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aprendi na mesa dos bares

que o nacionalismo é uma virtude 

Mas há uma hora em que os bares se fecham 

e todas as virtudes se negam.)

 

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Em entrevista a Maria Carolina Maia (link abaixo), Fernanda Montenegro reafirma a ideia do artista-como-alma-da-nação: “Nós somos o coração da sociedade. Não há sociedade que exista sem arte, sem se expressar culturalmente”. Dona Fernanda é uma artista, das melhores em seu ramo, e é perfeitamente compreensível que ela busque valorizar o próprio ofício. Mas o autoelogio conduz a essa consequência alarmante:  “Calar a arte é pior do que calar o pensamento. É calar o sentimento. O sentir de um país. A sensualidade. A carnificação de um país”.

Calar um artista, então, é pior do que calar um filósofo… A mordaça acaso seria ainda menos criminosa se tapasse a boca de um padeiro ou padre, de um engenheiro ou pedreiro?  Essa hierarquia de direitos é obviamente antidemocrática. Quero sinceramente acreditar que a atriz não pensou nas implicações últimas de sua afirmação, pois o que ela diz cabe em uma paráfrase de George Orwell: todos os animais são iguais, mas o artista, este animal todo coração, é mais igual que os outros.

***

No final de outubro, quando seu anunciado show em um acampamento do MTST em São Bernardo do Campo foi judicialmente proibido por alegadas razões de segurança, Caetano Veloso disse que esta era a primeira vez que se via impedido de cantar em plena democracia. Pois o Brasil já vivia no regime democrático pleno quando, dez anos atrás, uma obra foi recolhida das livrarias por determinação judicial. Falo, todos sabem, da biografia Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cesar de Araújo. O autor é um apaixonado pela música de Roberto, e sua paixão transparecia no livro banido. Ainda assim, se aceitarmos a distinção  entre arte e pensamento traçada por Fernanda Montenegro, uma biografia caberá melhor na segunda categoria. Como se comparam, então, esses dois casos – o primeiro, de arte calada, o segundo, de pensamento calado? O veto judicial à apresentação de Caetano foi circunstancial, e ele deve cantar em um show do MTST, em dezembro, no Largo da Batata, em São Paulo. Caetano não teve nenhuma letra cassada – não foi proibido de cantar Terra, Um Índio ou qualquer outra canção de seu repertório. Já Roberto Carlos em Detalhes foi efetiva e definitivamente proibido: como o autor, sob pressão, assinou um acordo judicial, não poderá mais reeditar o livro (anuncia-se a publicação de outra biografia, com novo texto).

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Qual dos casos é mais grave?

Tenho minha opinião a respeito. Mais do que isso, tenho uma avaliação firme sobre qual dos episódios admite com mais propriedade o emprego da palavra “censura”. Mas meus palpites não vêm tanto ao caso: esse paralelo ligeiro entre o show de Caetano e a biografia de Roberto serve apenas para salientar como são delicadas e difíceis todas as questões que envolvem a liberdade de expressão. Reivindicar a precedência da arte sobre outras formas de expressão não resolve a parada.

 

***

A despeito das críticas talvez duras que lhe faço, preciso reconhecer que Fernanda Montenegro ainda foi consideravelmente mais clara e sensata do que o grupo #342Artes em seu vídeo coletivo. A coisa já começa mal, com a sugestão paranoide de que todo o barulho em torno de exposições e performances é na verdade uma “cortina de fumaça”, um modo de “distrair a atenção” ou “tirar o foco” do que está acontecendo na política. Ah, mas que papo velho e cansado! Já se disse o mesmo sobre futebol, carnaval e telenovela: tudo para iludir o Zé Povinho, em cuja cabeça rude só cabem um ou dois assuntos de cada vez.

Lá no final do vídeo, alguém berra para a câmera, categórico: “ARTE NÃO É PEDOFILIA”.

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(Bom, até aí, cinema também não é nazismo, mas a Leni Riefenstahl…)

Uma campanha pública não deveria conquistar corações e mentes para sua causa? A despeito de todos os lugares-comuns sobre tolerância e diálogo, não encontro no vídeo qualquer esforço para abrir uma conversa com o eventual espectador não-artista. É razoável supor que muitos brasileiros se sentem desconfortáveis com a criança que toca na perna do adulto nu, mas tampouco simpatizam com a histeria dos santarrões fazendo barulho na entrada de mostras de arte. Que tal explicar – didaticamente, mas sem a superioridade condescendente do “querem distrair você, seu cabeça oca!” –  que uma performance não é uma situação erótica, que nem toda nudez implica sexo, e que pedofilia é coisa bem diferente e bem mais séria? A página do #342Artes no Facebook traz o link para uma excelente nota técnica do Ministério Público. Assinado pelos procuradores Deborah Duprat e Sergio Gardenghi Suiama, o texto discute pormenores da legislação brasileira sobre liberdade de expressão e sobre proteção a crianças e adolescentes. É um documento de mais de 40 páginas, com profusas citações da Constituição e de leis ordinárias – um vídeo traduzindo esse conteúdo para o leigo não seria útil? Sobretudo, seria necessário demonstrar ao cidadão comum que ele, mais do que ninguém, precisa da liberdade de expressão. É a sua liberdade de xingar o juiz de futebol e a autoridade que vem fazer demagogia em estádio; de cultuar o Deus ou os deuses ou as deusas de sua predileção, ou de negar a existência de todas as divindades; de reclamar do governo do turno seja de que partido for; de ver o show ou ler o livro ou assistir ao programa de TV que quiser.

Somos todos animais, cada um de nós dotado de sua própria voz. Algumas vozes são mais bonitas do que outras. Não significa que só elas devam ser ouvidas.

 

 

 

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