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Ideias e liberdade

O pensamento crítico se tornou a habilidade decisiva nesta época em que o excesso de ruído e imagem exige um pouco mais de cada um

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 11 set 2021, 08h42 - Publicado em 11 set 2021, 08h00

Dias atrás me chamou a atenção um texto do amigo e filósofo Luiz Felipe Pondé. Sua provocação era: “O capitalismo estaria apodrecendo?”. Estaria chegando ao fim sem nenhuma utopia viável para pôr no lugar? Achei interessante aquilo. Existe agora o “modelo chinês”, desafiando a democracia liberal. Há muita instabilidade política e um debate imenso sobre os males do mercado. Estaríamos à beira de algum precipício?

Uma das razões para a decadência seria o impacto das novas tecnologias — como a automação, a internet das coisas e a inteligência artificial — na destruição dos empregos. O raciocínio é intuitivo. Quando chegarem os carros autônomos, o que os motoristas do Uber vão fazer? E o pessoal do telemarketing, quando tudo for automatizado? Foi assim com os cubeiros, lá em Porto Alegre, chamados de “tigres”, que carregavam aqueles cilindros com dejetos humanos, antes das redes sanitárias. E com as telefonistas inglesas, que eram 120 000, em 1970, e hoje não passam de 20 000.

Muitos postos de trabalho desaparecerão e outros serão criados. Estudo da OCDE mostrou que, em vinte anos, o emprego industrial declinou 20%, mas cresceu 27% no setor de serviços. É o feijão com arroz da economia de mercado. Schumpeter já havia teorizado sobre isso com sua tese da “destruição criadora”. Ainda recentemente, três pesquisadores da Consultoria Deloitte, Ian Stewart, Debapratim De e Alex Cole, apresentaram uma pesquisa com dados do censo inglês desde 1871 e foram taxativos: “A tecnologia criou mais empregos do que destruiu nos últimos 144 anos”.

Outra razão do abismo seria a desigualdade. Se tornou comum dizer que a má distribuição de renda vai corroer o sistema. Falta demonstrar qual o padrão “certo” de distribuição econômica que se deve buscar. Como bem observou John Rawls, tendemos a comparar nossa situação com a de pessoas mais próximas a nós, nas comunidades em que convivemos e em relação às posições a que aspiramos. Não na “grande sociedade”. Ninguém acorda todos os dias enfurecido com a fortuna de Jeff Bezos. Mas, com razão, nos indignamos se somos discriminados, no trabalho ou na vida social.

Nos temas que realmente importam há avanços relevantes em nosso tempo. A drástica redução da pobreza talvez seja o mais crucial deles. Apenas no período da mal-afamada globalização, a pobreza global caiu de 36% para 10% entre 1990 e 2015. Outro aspecto: a convergência dos padrões básicos de vida. O US Bureau of Labor Statistics mostrou que, entre 1901 e 2002, o gasto das famílias americanas com alimentação caiu de 42% para 13% de sua renda. Na Inglaterra, o gasto caiu de 35%, em 1950, para pouco mais de 11%, em 2014. Não só a renda cresceu, como o custo relativo dos produtos básicos caiu significativamente.

Há um tema muito mais amplo aí que se refere à igualdade de direitos. Lembro quando Obama, no aniversário dos cinquenta anos na Marcha de Selma, provocou a imensa multidão que refazia o trajeto de Martin Luther King, na luta pelos direitos civis, dizendo que “se você acha que nada mudou nos últimos cinquenta anos, pergunte a alguém que viveu em Selma ou Chicago nos anos 50. Pergunte à mulher que hoje é CEO, e não mais restrita a ser secretária, se nada mudou. Pergunte a seu amigo gay se é mais fácil ter orgulho na América hoje do que há trinta anos”. E concluiu: “Negar este progresso é roubar nosso próprio poder de transformar”.

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No mundo da economia, poucas pessoas expressam melhor um tipo de otimismo realista do que Deirdre McCloskey, autora da monumental trilogia sobre a igualdade, a dignidade e as virtudes burguesas. Deirdre não gosta da palavra capitalismo. Prefere a ideia do “inovismo”. Seu ponto é que não foi o capital, mas, sim, as ideias, ou a inovação que fizeram a diferença no surgimento da moderna economia de mercado. Em algum momento entre os séculos XVII e XIX, o homem comum ganhou dignidade. O padeiro, o comerciante, o inventor de coisas. Primeiro timidamente, mas em um processo contínuo e pari passu à afirmação das sociedades de direito. Daí o casamento moderno entre a economia de mercado e a democracia liberal.

“Ninguém acorda todos os dias enfurecido com a fortuna de Jeff Bezos”

Deirdre fala em um tipo de humanismo liberal. O apreço pela persuasão, o direito inegociável de dizer “não”, a aplicação apenas muito moderada do que Weber chamou de “monopólio do uso legítimo da violência”, por parte do Estado. No fundo, o receituário liberal de regras estáveis, direitos iguais, menos política e burocracia infernizando a vida das pessoas. A partir daí, valem as escolhas humanas, e seu resultado não é sujeito a nenhum padrão distributivo predeterminado. Quando Pondé observa a incorporação da retórica identitária, ligada a temas de gênero ou orientação sexual, na vida das empresas, é disso que se trata. Alguns gostam, outros ficam nervosos, mas é o capitalismo fazendo seus ajustes. O mercado é antropofágico. Digere a diferença, “marketiza” o dissidente. Boas atitudes surgem como um tipo de commodity. Mesmo os filósofos adquiriram bom valor de mercado.

Pessimistas tendem a subestimar o traço espontâneo e adaptativo do sistema. Afora isso, o pessimismo é um estilo intelectual que vem de longe. Em 1979, Karl Popper fez um inspirado discurso na abertura do Festival de Salzburg, dizendo que “o pessimismo havia se tornado a moda dominante da intelligentsia”. O velho professor se dizia um otimista e garantia que sua época era “melhor do que a sua reputação”. Em um ambiente de desprezo pelas vulgaridades da indústria cultural, ele provoca: graças a ela, milhões de pessoas podem hoje ter acesso ao melhor de Bach, Mozart e Beethoven.

Popper pede que prestemos atenção ao “outro lado”. Tenho essa impressão quando observo esses multibilionários aventurando-se no espaço para fins inteiramente comerciais. Hoje soa algo extravagante. Logo será uma indústria. Tive essa mesma sensação em uma noite fria de Nova York, quando fui ao Village assistir a um show de novos negócios da chamada sharing economy. Sua marca era entregar coisas às pessoas, de legumes frescos a relógios de luxo, a custos muito mais baixos e autorregulação feita pelos indivíduos. Se alguém “olhar para o outro lado”, a cada canto do mundo verá dessas coisas.

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O capitalismo não vai desaparecer. A inteligência artificial, a revolução energética e tantas outras seguirão sua marcha. Tudo que precisamos decidir é se estaremos dentro ou fora do jogo. Para saber o que fazer, é só dar uma olhada na lista das ocupações destinadas a desaparecer e as que vão crescer rapidamente. Num relance vamos descobrir que precisamos capacitar as pessoas para pensar, e não apenas para apertar botões. Não é à toa que o pensamento crítico se tornou a habilidade decisiva nesta época em que o excesso de ruído e imagem exige um pouco mais de cada um. Aqui nos trópicos isso tudo ainda é muito abstrato, mas não deveria ser.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755

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