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A dupla moral brasileira

A glamourização do crime e da favela correm em linhas paralelas no Brasil: elogiamos algo que só topamos a uma distância segura

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 20 Maio 2021, 17h06 - Publicado em 14 Maio 2021, 06h00

“Seja marginal, seja herói”, dizia a frase de Hélio Oiticica na obra em homenagem ao Cara de Cavalo, bandido da Favela do Esqueleto, morto pela polícia em 1964. Affon­so Romano de Sant’Anna conta que viu a obra, numa exposição no MAM, no dia da morte de Tim Lopes, pelo tráfico, e não pode evitar a sensação de que havia uma coisa errada naquilo tudo.

A glamorização do crime e da favela correm em linhas paralelas no Brasil. Ainda me lembro do clipe do Michael Jackson no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, nos anos 90. Cobertura no Jornal Nacional, um secreto orgulho de mostrar a “nossa favela” para o mundo. Lembro, anos depois, da ideia genial dos roteiros turísticos na favela. Em meio a um mundo cada vez mais padronizado, a favela surgia como fonte de exotismo e estranhamento. O pitoresco, o casebre, a criança quase nua, solta na ruela, o samba meio ensaiado, aqui e ali.

Lembrei dessas coisas quando tentava entender o massacre do Jacarezinho. Eu deparei com o depoimento de alguns anos atrás do André Constantine, morador da Babilônia, do movimento Favela Não Se Cala. “Aqui na Babilônia tem três cemitérios clandestinos”, disse ele. “Como é que eu vou romantizar um território em que minha filha não tem chance de crescer intelectualmente por causa dos confrontos?” É preciso desconstruir essa romantização por parte dos intelectuais e dos acadêmicos.

A glamorização é um tipo de dupla moral: elogiamos algo que só topamos a uma distância segura. Achamos legal, mas para os outros. Isso me faz lembrar do dualismo da “ética da casa e da rua”, de Roberto DaMatta, só que no plano da retórica: para os outros acho um charme aquele colorido todo da “comunidade”, aquela vibração “única”, como li num texto delirante. Mas não para mim, nem para os meus. Aqui em casa prefiro a ordem e o silêncio. Polícia na rua, lixo recolhido na hora certa, guarda na portaria e tudo funcionando direitinho.

O dualismo retórico é um traço da nossa cultura pública. Quando o tema é saúde, não conheço político que não encha a boca para elogiar nosso “sistema público de saúde”. Na pandemia, a coisa virou moda também na internet. O cara se emociona lá elogiando o modelo estatal, mas no terceiro espirro vai na emergência particular. O discurso público é um, a verdade da vida privada é outra.

Pesquisa global da Ipsos, em 2018, questionou a avaliação sobre a “qualidade do atendimento” de saúde a que as pessoas têm acesso, em cada país. O Brasil ficou em último lugar entre as nações pesquisadas, com avaliação negativa por parte de 57% dos usuários. É a mesma posição quando se pergunta sobre a facilidade de marcar uma consulta médica. É um curioso paradoxo. A retórica pública diz que “sistema público” é ótimo, mas a avaliação real dos usuários aponta precisamente na direção contrária.

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Durante a pandemia, o Projeto UTIs Brasileiras divulgou uma pesquisa incômoda mostrando que a mortalidade nas UTIs estatais era de 52,9%, ante 29,7% nas privadas. É evidente que existem fatores sociais e econômicos que afetam essa realidade, e esse é exatamente o problema. Pessoas mais pobres deveriam ter acesso às mesmas condições de atendimento, com rapidez, sem filas, que têm a classe média e os mais ricos. Ou não?

Um levantamento do Conselho Federal de Medicina mostrou que 45% dos pacientes estão esperando uma consulta há mais de seis meses, e 29% estão há mais de um ano na fila. Não passa de uma fina e macabra ironia responsabilizar a “condição social” das pessoas por sua própria taxa de mortalidade nas UTIs do setor público. E não é difícil de entender por que ter um plano de saúde é o sonho de 73% dos brasileiros, o terceiro maior, segundo o Ibope, à frente do automóvel e logo atrás da casa própria.

A verdade é que todos sabemos que o sistema é estruturalmente falho, mas vamos levando. Apostamos no dualismo moral: elogio fácil do sistema estatal, de um lado, e a proteção no mercado privado (para quem pode), do outro. Muitos dirão que não há problema nisso, que é apenas a marca de um país desigual, que é perigoso desagradar as corporações públicas. E que as coisas estão melhorando, devagar, e que é preciso ter paciência.

“Abominamos a desigualdade, mas nos habituamos a ela”

Discordo. Há um pro­blema, sim, e ele não está no fato de que as pessoas tenham bons planos de saúde e façam o melhor por suas famílias. O ponto é nosso ar blasé quando se trata da vida de quem sofre abuso sexual na favela ou espera há 676 dias por uma cirurgia para obesidade mórbida, pelo SUS, em uma capital brasileira, como li tempos atrás.

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Essa atitude vem do fundo da tradição brasileira. Da aceitação passiva de um tipo de subcidadania, tão presente na ideia de que “a saúde é ruim, mas é melhor que nada”, ou “a escola não funciona, mas ao menos tem onde deixar as crianças”. No fundo é a longa memória de um país que aprendeu a esperar muito pouco de si mesmo. Dizemos abominar nossa desigualdade, mas nos habituamos a ela. É um pouco do que ocorreu com a pregação do isolamento social na pandemia. Muita gente surpresa com as estações lotadas, cedo de manhã, mas uma arara se o porteiro chega atrasado ao serviço. Vem do fundo de nossa história, mas não significa que seja um destino.

Digo isso porque há muita coisa mudando no Brasil. Na saúde, por exemplo, é só dar uma olhada em uma experiência como a do hospital regional de Jundiaí, no interior de São Paulo, gerenciado pelo Instituto Sírio-Libanês, ou a do Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch, em São Paulo, gerido em parceria com o Albert Einstein, ou ainda a do Hospital do Subúrbio, em Salvador, premiado internacionalmente e gerenciado por meio de uma PPP. O ponto básico dessas iniciativas: rompe-se com a inércia. O Estado reposiciona o seu papel, se põe como regulador e delega a gestão ao setor privado. E com isso quebra o apartheid. Permite aos cidadãos, com maior ou menor renda, o acesso à mesma qualidade, ou ao menos a uma qualidade similar de serviços.

Não acho que tudo isso seja muito difícil de aprender ou de fazer. O ponto é que não se trata apenas de uma questão de técnicas de gestão. Esse, o fundo, é o menor dos problemas. A questão é romper com o substrato cultural que mantém boa parte do país na inércia e que ainda faz jus ao “assim é porque sempre foi”, na frase lapidar de Raymundo Faoro definindo nosso tradicionalismo político. O problema ainda está na nossa cabeça, e é por aí que precisamos começar a mudar.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738

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