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Análises irreverentes dos fatos essenciais de política e cultura no Brasil e no resto do mundo, com base na regra de Lima Barreto: "Troça e simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo".
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O pequeno escritor

Por Felipe Moura Brasil Atualizado em 31 jul 2020, 04h51 - Publicado em 6 dez 2013, 03h38

[Tiro do baú este meu conto, que ainda há de virar curta-metragem, porque este blog na VEJA não seria a minha cara sem ele.]
 
– Mas, pai, como é que eles sabem tudo do mundo?
 
Televisão ligada no telejornal.
 
– Eles estão lendo, meu filho.
– Como, se eles estão olhando pra gente?
– Eles estão lendo na câmera.
– Mas de que tamanho é a câmera?
 
O pai abre os braços.
 
– E cabe tudo que eles estão falando nesse tamanho?
– É um computador. As letrinhas vão descendo.
– É uma câmera ou é um computador?
– Os dois.
 
O filho analisa o telejornal.
 
– Mas, pai, se eles estão lendo, você também podia ler, né?
– Não, meu filho.
– Você não sabe ler, pai?
– Sei, mas não na televisão.
– Qual é a diferença?
– É mais difícil.
 
Comerciais.
 
– Pai, compra um computador-câmera pra mim?
– Você quer trabalhar na televisão, filho?
– Eu quero saber tudo do mundo. É muito caro?
– Mais ou menos. Mas não vem com tudo do mundo.
– Como assim?
– Alguém precisa escrever o que você vai ler.
– Você não sabe escrever?
– Sei, mas não pra televisão. Não tudo do mundo.
– E quem sabe tudo do mundo?
– Um monte de gente.
– Um monte de gente, e você não?
– Não, um monte de gente junta.
– Ninguém sabe tudo do mundo sozinho?
– Ninguém.
– Nem eles que estão lendo?
– Muito menos eles.
 
Volta o telejornal.
 
– Onde está quem escreveu o que eles estão lendo?
– A maioria não aparece.
– E pode isso? Ficar lendo as coisas dos outros?
– Pode.
– Eles não ficam bravos?
– É o trabalho deles.
– Qual é a graça de saber tudo do mundo e ficar escondido?
– Não sei.
 
O filho levanta, pega um livro da estante.
 
– Quem escreveu isso?
– Shakespeare.
– Você conhece?
– Só de foto.
– Mas nunca viu ele falando?
– Nunca.
– Nem na rua?
– Nem na rua.
– E ele sabe muita coisa?
– Muita.
– Por que ele fica escondido, então?
– Pra poder escrever.
– Não é chato?
– É o trabalho dele.
 
O filho olha o telejornal. Olha Shakespeare. Alterna entre os dois.
 
– Ele não escreve pro computador-câmera?
 
Ele é Shakespeare.
 
– Não.
– Ninguém lê isso na televisão?
 
Isso é Hamlet.
 
– Não.
– Onde se lê isso?
– No livro ou no teatro.
– Teatro?
– É como na televisão, só que quem lê está na nossa frente, de verdade.
– Sem computador-câmera?
– Sem.
– Eles levam o livro na mão?
– Eles guardam tudo na cabeça.
 
O filho folheia Hamlet.
 
– Tudo isso?
– Tudinho.
– Então teatro é mais difícil que televisão?
– Talvez… É diferente.
 
Comerciais.
 
– Mas, pai, quem sabe mais do mundo: quem escreve pro computador-câmera ou ele?
 
Ele é Shakespeare.
 
– Ele, meu filho.
– Tem certeza?
– Absoluta.
– Então por que estamos vendo televisão?
– Não sei. Quer que eu leia pra você?
– Quero.
 
O pai desliga a televisão. Começa a ler Shakespeare.
 
– Você erra muito, pai!
– Faz tempo que não leio Shakespeare.
– Não entendi nada.
– Aos poucos, você entende.
 
O pai continua lendo. O filho dorme parcialmente.
 
Sonha que está na televisão. O computador-câmera é o livro de Shakespeare. Ele apresenta o telejornal. O telejornal é Hamlet. Sua voz é a de seu pai.
 
O pai erra. Ele acorda.
 
– Quem escreve também erra, pai?
– Erra, filho, mas tem tempo pra corrigir. Mesmo assim, erra.
– Ele erra?
 
Ele é Shakespeare.
 
– Nunca notei, filho. Por quê?
– Eu quero saber tudo do mundo e ter tempo pra corrigir.
– Você quer ser escritor?
– Não sei. Tenho que ficar escondido?
– Não sei.
 
O pai volta a ler. O filho volta a sonhar. Agora é Shakespeare. Está escondido atrás do computador-câmera. O telejornal é Hamlet. Segundo ato. Os apresentadores têm a voz de seu pai.
 
O pai engata na leitura. Os apresentadores não erram. O filho vai ficando mais à vontade. Sente menos frio. Os apresentadores dizem boa noite. Acaba o telejornal. Os apresentadores lhe dão um beijo na testa. Vão embora.
 
Shakespeare acorda de manhã.
 
Por Felipe Moura Brasilhttps://veja.abril.com.br/blog/felipe-moura-brasil

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