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Análises irreverentes dos fatos essenciais de política e cultura no Brasil e no resto do mundo, com base na regra de Lima Barreto: "Troça e simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo".
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A decadência cultural brasileira: Zuenir Ventura em lugar de João Ubaldo Ribeiro na Academia Brasileira de Letras?

Por Felipe Moura Brasil Atualizado em 31 jul 2020, 03h27 - Publicado em 20 jul 2014, 18h54
Zuenir Ubaldo

Zuenir e Ubaldo: amigos, amigos; qualidades à parte

Depois da oficialização da candidatura de Ferreira Gullar à vaga de Ivan Junqueira na Academia Brasileira de Letras, só há três escritores brasileiros vivos capazes de substituir João Ubaldo Ribeiro sem resultar em uma queda vertiginosa de versatilidade e qualidade – e possivelmente elevando esta última: Rubem Fonseca (89 anos), Olavo de Carvalho (67) e Diogo Mainardi (51). O embaixador José Osvaldo de Meira Penna (97), de quem só a concepção psicológica do povo brasileiro em obras-primas como Em berço esplêndido já vale pelas obras completas de uma porção de acadêmicos, é uma ausência sacramentada tão lamentável que nem comento mais.

Nenhum dos outros três, no entanto, demonstra interesse em se candidatar. O primeiro seria barbada. Amigo de Ubaldo, com quem almoçava às terças-feiras no Leblon, “Zé Rubem” ainda era considerado por ele o melhor escritor do Brasil. Os outros dois, que já detonaram as obras de boa parte dos imortais da ABL e desmascaram há décadas os engodos esquerdistas, sofreriam decerto na associação, na imprensa e nas redes sociais as campanhas de oposição mais fortes da história da disputa. O candidato preferido da vez então é Zuenir Ventura, mais um jornalista queridinho das esquerdas, tido até em blog sujo do PT como um cara legal, que escreveu livros legais, e de quem todo mundo gosta (“todo mundo” para esquerdista é como “sociedade civil”: basicamente, a companheirada) e cuja obra também já foi várias vezes detonada por Olavo e Diogo – e até por mim, imagine!, como se vê no post anterior.

Em termos de capacidade de expressão, domínio do idioma, clareza, incisividade, precisão, raciocínio, erudição, horizonte de consciência, acerto de previsões e contribuição literária e intelectual, Zuenir está tão atrás de Ubaldo, Fonseca, Olavo e Diogo que qualquer comparação entre um e outros é de uma covardia até constrangedora. Mas sejamos um tanto covardes.

Enquanto esses dois últimos anteviram toda sorte de vigarices da esquerda revolucionária, Zuenir escreveu na introdução de seu badalado livro 1968 — O Ano que Não Terminou que, embora aquela geração não tivesse conseguido realizar seu sonho de revolução total, havia deixado um importante legado: “arriscando a vida pela política, ela não sabia, porém, que estava sendo salva historicamente pela ética[!!!]. O conteúdo moral[!!!] é a melhor herança[!!!] que a geração de 68 poderia deixar para um país cada vez mais governado pela falta de memória e pela ausência de ética”. Como comentou recentemente o também blogueiro da VEJA Ricardo Setti: “Bem, o livro de Zuenir foi publicado em 1988, quando o presidente era Sarney e a oposição do PT e do recém-fundado PSDB tinha a ética como uma de suas principais bandeiras. Hoje, após tantas e tenebrosas transações, esse legado da ética na política já não cola tanto na geração de 68.” Entre a bandeira pela ética na política e o efetivo conteúdo moral de seus portadores, há uma distância enorme que Zuenir, como bom esquerdista, não soube ou não quis distinguir, contribuindo assim para a imagem (termo que lhe é tão caro) moralmente positiva, imagine, de petistas – imagem esta que, volta e meia, ele ainda forja em seus artigos. Olavo já dava uma explicação definitiva para isto em A nova era e a revolução cultural:

“O público brasileiro tem ouvido este termo [Estado Ético], proferido num contexto de combate à corrupção e de restauração da moralidade. Mas ele é um termo técnico da estratégia gramsciana, que designa apenas uma determinada etapa na luta revolucionária — uma etapa, aliás, bastante avançada, na qual a radicalização do conflito de interesses de classe prepara o início da etapa orgástica: a conquista do poder. Que, no caótico senso comum brasileiro, o termo Estado Ético tenha ressonâncias moralizadoras inteiramente alheias ao seu verdadeiro intuito, mostra apenas que o público nacional ignora a inspiração diretamente gramsciana do Movimento pela Ética na Política e nem de longe suspeita que seu único objetivo é politizar a ética, canalizando as aspirações morais mais ou menos confusas da população de modo a que sirvam a objetivos que nada têm a ver com o que um cidadão comum entende por moral.”

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Para uma análise sintética do relativismo moral herdado de 1968, vale a pena ler também “1968, o embuste que não terminou“, artigo que incluí na seção “História & embuste” do capítulo Intelligentzia do nosso best seller O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, uma coletânea que faz os textos de Zuenir Ventura no Globo parecerem as redações escolares que talvez sejam. Não vou comparar aqui a definição de inveja contida no primeiro parágrafo do artigo “Dialética da inveja” (p. 373) com o livro inteiro de Zuenir Inveja – mal secreto, porque não quero extrapolar a covardia literária, mas quem se interessar verá a distinção entre um escritor consciente – como também era Ubaldo – e um repórter atrás de aspas. Tampouco direi quem foi que Olavo incluiu ao lado de Frei Betto e Leonardo Boff ao falar, em entrevista sobre educação, de “todas essas nulidades esplêndidas que, por mero espírito de patota política solidária, o lobby da mediocridade esquerdista impinge aos nossos meninos de escola”.

Não é preciso. No recente e sintomático artigo “Um país duro de digerir“, o próprio Zuenir admitiu sua incapacidade de compreender a realidade, mas naturalmente falando em termos genéricos em nome de toda uma classe (porque assim é mais fácil, não é mesmo?): “E tanto é verdade que todos nós, jornalistas, economistas, sociólogos, erramos de tal maneira em nossas antevisões que somos chamados de ‘profetas do passado’ — só conseguimos acertar o que passou, assim mesmo, nem sempre.” “Todos nós” para esquerdista, repito, é basicamente a companheirada. E reconhecer os acertos das antevisões de críticos da companheirada como Olavo, Diogo e outros tantos é algo ainda mais acima de suas capacidades do que reconhecer a própria existência deles. Em outro artigo, após o fracasso da seleção na Copa, Zuenir mais uma vez admitiu sua incapacidade em nome da classe: “Nós, jornalistas, somos mesmo profetas do passado, quase nunca acertamos o futuro. Esperávamos o sucesso nos gramados, e anunciávamos o caos nas ruas, aeroportos e portos. Erramos, embora se saiba que as obras ficaram inacabadas, assim como outros legados de infraestrutura.” Quer dizer: se o PT se vangloria do sucesso da Copa acusando a imprensa de “pessimismo”, Zuenir, em vez de mostrar – como fiz aqui – que a imprensa apenas COBROU que as obras de fato atrasadas ficassem em dia, apressa-se em vestir a carapuça em nome dela, legitimando a propaganda petista. Como antecipara Diogo Mainardi em 2003 no memorável artigo “Corrente chapa-branca“:

“Concordo que é um despropósito cismar com Zuenir Ventura. Ele parece ser uma pessoa afável, generosa, simpática, disponível, amiga. Fala bem de todo mundo e, mesmo quando assume um tom indignado, continua inócuo. O problema é que passei a identificá-lo com os aspectos mais irritantes do novo Brasil lulista: os bons sentimentos afundam na demagogia, os bons propósitos esbarram no corporativismo, os bons princípios camuflam a incompetência, os bons auspícios manifestam um otimismo cabalístico. Como a maior parte dos brasileiros, Zuenir Ventura aderiu a essa corrente para a frente, a essa corrente de Santo Antônio chapa-branca. Espero que a tal lua-de-mel com o governo acabe logo. Cansei de ver gente aplaudindo o pôr-do-sol. Cansei de ler artigos sobre bursite.” A lua-de-mel, como se vê acima e no post anterior, nunca acabou. Ficou apenas, quando muito, menos escancarada. E agora que este “profeta [‘nem sempre’ certo] do passado” é cotado para a ABL, cismar com ele é um dever intelectual. Sua linguagem hiperbólica para descrever o pôr-do-sol de Ipanema merece ser lembrada pelos acadêmicos como uma amostra do seu nível literário: “Atordoados pela beleza, deslumbrados com o delírio de luz e cor, os banhistas permanecem em contrito silêncio, observando a enorme bola de fogo realizar sua lenta e cuidadosa descida”. Como ironizou Diogo: “Em Ipanema, o sol se põe atrás da favela do Vidigal. Zuenir Ventura descreve a cena como uma autêntica ‘visão do paraíso’. Para mim, o paraíso tem esgoto e água encanada. E não é do Comando Vermelho.”

Muito mais próximo, aliás, de Viva o povo brasileiro, o clássico de Ubaldo que mistura fatos reais com fantasias ficcionais para retratar quatro séculos da História do Brasil, está Contra o Brasil, o quarto e melhor romance de Mainardi, cujo protoganista ridiculariza o país, expondo suas fraquezas – inclusive a servidão voluntária presente em toda a obra ficcional do autor – por meio de citações reais de grandes pensadores estrangeiros que passaram por aqui. Perto de ambos, do poder de cada um de trazer à luz da consciência individual os traços culturais arraigados na sociedade brasileira através da literatura, o livro-reportagem Cidade partida de Zuenir não passa de uma nota carioca de rodapé, para não dizer panfleto do Viva Rio. E não comparo A queda, o melhor livro brasileiro dos últimos tempos, com, sei lá, o autorretrato da patota O que fizemos de nós por pura piedade. Autores como Cristóvão Tezza (61 anos) e Alberto Mussa (52) também já deram contribuições à literatura muito mais valiosas e perenes que Zuenir, especialmente com O filho eterno e agora A primeira história do mundo. Isto sem falar nos contistas Sérgio Sant’Anna (73) e Dalton Trevisan (89), este já premiado pela própria ABL; no poeta, ensaísta e professor Affonso Romano de Sant’Anna (77), que já revelou não ter interesse algum, não acreditar na imortalidade e que aquele fardão lhe “dá a sensação de que estaria embalsamado em vida”; [ou mesmo no historiador Evaldo Cabral de Mello, principal concorrente de Zuenir, como fiquei sabendo pela coluna de Lauro Jardim logo após publicar este artigo;] entre outros.

Sei, como bem disse a imortal Nélida Piñon recentemente no Roda Viva, que “uma instituição está sujeita a equívocos” e que o desejo de integrar a ABL tem de partir também dos autores, e sei também que quando alguém tido como “reacionário” como eu, citando ainda Olavo e Diogo, expõe as mediocridades de um autor esquerdista como Zuenir, isto pode até fortalecer a sua candidatura, mas não posso deixar de constatar o sintoma da decadência cultural brasileira, explícito em uma cadeira que passa de um dos maiores prosadores da história do país para um colunista militante tão aquém da honraria. No velório de Ubaldo, Zuenir declarou:

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“Ele foi o maior exemplo de que dá para conciliar as duas vertentes. O maior legado como romancista é a originalidade. Ele foi grande amigo do também baiano Jorge Amado, no entanto não teve influência, sua obra foi diferente, porém tão importante quanto. Como colunista, o que marcou foi a independência do olhar. Ele tinha uma liberdade de expressão e uma independência incrível. João era singular.”

Eu jamais diria que o maior legado de alguém é a “originalidade”, nem que alguém tinha “uma liberdade de expressão”, mas dou o desconto da dor do momento – e, de resto, é tudo verdade. Infelizmente, porém, com a exceção talvez da amizade com Jorge Amado, nada do que foi dito se aplica ao postulante. Imortalizar Zuenir é matar mais uma vez a cultura do Brasil.

Felipe Moura Brasil – https://www.veja.com/felipemourabrasil

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Veja também: A imagem chapa-branca de Zuenir Ventura

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