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O conforto do guardanapo

Hoje ele simboliza civilidade à mesa, mas já substituiu coelhos no tempo em que as pessoas comiam com as mãos e limpavam os dedos em animais

Por J.A. Dias Lopes 23 jul 2018, 20h33

Um livro de autenticidade discutida, porém imperdível, intitulado Leonardo’s Kitchen Note Book, conhecido por Codex Romanoff (William Collins & Sons, Londres 1987), atribui a invenção do guardanapo individual ao autor do afresco A Última Ceia, pintado em uma das paredes da Igreja de Santa Maria delle Grazie, em Milão, na Itália. Referimo-nos ao genial artista plástico, arquiteto, cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, botânico, poeta e músico Leonardo da Vinci (1452-1519), o ser humano dotado de talentos mais diversos que o mundo conheceu.

A estreia do guardanapo individual teria acontecido no esplendor da Renascença, período da história europeia que se estendeu de meados do século XIV ao fim do século XVI, assinalado por grandes transformações na sociedade, economia, política, cultura e religião. Segundo o Codex Romanoff, Leonardo foi por dezessete anos conselheiro de fortificações e mestre de cerimônias e banquetes de Ludovico Sforza, o Mouro (1452-1508), Duque de Milão, seu protetor e de outros artistas célebres. Enquanto esteve naquela corte, pintou o afresco sobre a derradeira refeição de Jesus Cristo.

Comia-se com as mãos naquele tempo. A etiqueta e a higiene à mesa, apesar dos esforços de elegância, ainda eram primitivas. Nos banquetes requintados, os anfitriões mandavam amarrar coelhos vivos nos bancos. Os convidados lambiam os dedos engordurados e, a seguir, limpavam nos pelos dos animais. Os troca-coelhos eram invejados, pois ao fazerem o revezamento dos bichinhos ouviam as conversas da nobreza e da aristocracia. Portanto, tornavam-se bem informados de política, negócios, intrigas e da vida das pessoas importantes.

Na falta de coelhos, os convidados limpavam as mãos na toalha da mesa ou na roupa do vizinho. A presença daqueles animais conferia status e prestígio ao anfitrião. Em banquetes menos formais, limpava-se os dedos no miolo do pão, que depois atiravam imundo aos cães soltos temporariamente para a faxina. Se ficassem livres o tempo todo, atacariam os coelhos ou perturbariam a refeição, rosnando ou latindo uns com os outros.

Os convidados ainda costumavam jogar restos da comida no chão. Os cães faziam a festa com o que recebiam, desde ossos até cabeças de peixes. Há quadros antigos mostrando a barafunda dos banquetes e a cachorrada presente, como por exemplo o óleo Le Déjeuner de Jambon, de Nicolas Lacret, pintado em 1735 e exposto no Museu Condé, em Chantilly, ao norte de Paris. Impressionado com isso, Leonardo teria substituído os coelhos pelo guardanapo individual.

Refeição no passado: panos enormes para limpar os dedos e lábios e cães em volta para comer as sobras dos alimentos – Nicolas Lacret, 1735, “Le Déjeuner de Jambon”, Museu Condé, Chantilly, França (Museu Condé/Divulgação)

Na prática, o pintor de A Última Ceia aperfeiçoou um conforto já existente na Antiguidade Clássica. Os romanos usavam dois tipos de guardanapo: mappa, para os lábios, e sudarium, para mãos e olhos. Mas eram enormes, pareciam toalhas de banho e nem sempre oferecidos pelo anfitrião: os convidados precisavam trazê-los de casa. Continuaram imensos na Idade Média, porém luxuosos, bordados inclusive a ouro e franjados. Os convidados enrolavam a peça no braço esquerdo ou a colocavam no ombro do mesmo lado. Entretanto, muitas vezes só a usavam por ostentação. Outro costume: dependurar pedaços de pano na parede para uso comunitário.

A partir de meados do século XVII, passou-se a colocar o guardanapo no pescoço, caindo até abaixo da cintura. Lembrava um babador de adulto. O guardanapo permanecia muito grande, medindo cerca de um metro quadrado. Duzentos anos depois, o costume saiu de moda e foi considerado de mau gosto, próprio de quem não recebera boa educação. O gastrônomo Jean Anthelme Brillat-Savarin (1755 -1826), um dos mais famosos epicuristas franceses, protestou sem sucesso contra a mudança da etiqueta. Proteger o pescoço evitava sujar o colarinho de renda em moda para os homens.

O guardanapo individual de Leonardo teria demorado para ser aceito. Segundo o Codex Romanoff, ninguém sabia o que fazer com aquele pedaço de pano. Pietro Alemani, apresentado no livro como embaixador de Florença em Milão, descreve o embaraço: “Alguns se sentaram sobre o pano, outros limparam o nariz com ele (…). Outros usaram para embrulhar pedaços de carne e guardar nos bolsos”. A história ficaria mais saborosa se a sua autenticidade fosse indiscutível. Mas continua a valer pelo delicioso bom humor.

O livro traz receitas de pratos renascentistas, regras de etiqueta à mesa, anotações, projetos de invenção e variadas ilustrações. Tudo é creditado a Leonardo. O polivalente pintor de A Última Ceia seria o pioneiro não só do guardanapo individual, como o criador de diversos utensílios de cozinha. O manuscrito foi batizado de Codex Romanoff porque teria permanecido durante muito tempo em poder da família homônima, que governou o Império Russo.

Acusam o texto, porém, de ser uma brincadeira escrita pelo casal de historiadores britânicos Shelag e Jonathan Routh, com a marota intenção de divertir os leitores. Quando o editaram pela primeira vez, em Londres, eles disseram ter descoberto o manuscrito na Rússia. Procurados depois, admitiram não conseguir provar que os escritos sejam mesmo do gênio renascentista.  No verbete dedicado ao guardanapo, a Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia (Selezione dal Reader’s Digest, Milão, 2000) confirma que esse conforto individual apareceu no Renascimento, mas não faz referência a Leonardo.

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O Codex Romanoff também se refere à preocupação do gênio renascentista com o comportamento às refeições e oferece soluções para uma situação importantíssima. “As manchas de sangue nas toalhas (que podem ser provenientes de um acidente com a faca de cortar ou algum assassinato) já não representam problema algum, nem se deve tirá-las para limpá-las”, orienta o livro. “Deve-se esfregar com força a área manchada com água de nabos morna”.

A origem da palavra guardanapo, usada na língua portuguesa, também é controvertida. Viria do francês garde-nappe. “Ser ou não ser, eis a questão”, disse Hamlet, prisioneiro da dúvida e da solidão, no monólogo da primeira cena do terceiro ato da peça do mesmo nome de William Shakespeare. Embora a frase antológica não caiba aqui como uma luva, vamos evocá-la. Garde-nappe é o nome dado à toalha de mesa no país de Honoré de Balzac, Victor Hugo e Marcel Proust. Guardanapo, na França, chama-se serviette.

Aliás, o adereço teria sido aperfeiçoado naquele país. A arte de dobrá-lo em forma de leque, triângulo, pirâmide, cisne ou barco teve seu apogeu no Palácio de Versalhes, centro do poder do Antigo Regime do país. Credita-se aos franceses a padronização do guardanapo. Hoje, mede em média cerca de 45 × 45 centímetros, no caso do maior, enquanto o menor, usado nas festas e buffets, bares e restaurantes populares, fica em torno de 20 × 20 centímetros.

Os norte-americanos também se envolvem na história, pois seriam os precursores do guardanapo de papel, hoje largamente difundido em ambientes informais. Nunca substituirá o de pano, exceto pela vantagem higiênica, por ser descartável após o uso. Serve para todo tipo de ocasião, adapta-se especialmente às mais despojadas. Graças à sua praticidade, vai à mesa em residências do mundo afora, no almoço ou jantar familiar. Muitas vezes é lindíssimo, traz estampas coloridas, desenhos em alto-relevo e até as iniciais impressas dos donos da casa. No entanto, falta-lhe a distinção do homônimo de pano, sobretudo quando de linho.

O guardanapo de tecido é tradicionalmente branco ou apresenta a mesma cor da toalha, com igual bordado ou não. Abre o ritual da refeição colocado à esquerda do prato ou sobre este. Considera-se elegante embuti-lo em uma argola ou fita vistosa, anel de metal, cristal ou porcelana. Assim que nos sentamos, libertamos o guardanapo do seu ornamento e o estendemos no colo, aberto ou dobrado ao meio. Desse modo, protegemo-nos dos salpicos de alimentos, obviamente durante a refeição.

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Quando necessitamos usá-lo, não devemos esfregá-lo na boca, mas passá-lo ligeiramente nos lábios. Em certas refeições elegantes, admite-se um segundo guardanapo à mesa, este de papel, que serve para as mulheres tirarem ou amenizarem o batom. Não deve ser usado para outra finalidade, nem estendido no colo. Ao levantarmos da mesa, o guardanapo de tecido ficará à esquerda do prato, sem dobrar, sinal de que não será utilizado em uma próxima refeição. Enfim, são normas de etiqueta à mesa, que criaram um padrão de civilidade. Quem quiser desrespeitá-las, que se atreva.

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