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O bacalhau do nome feio

Pródigos no preparo do peixe capturado no Mar da Noruega, Canadá e Alasca, os portugueses batizam suas receitas até com palavra chula

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 6 mar 2018, 11h17 - Publicado em 6 mar 2018, 11h17

Por tradição familiar ou motivação religiosa, muitas pessoas evitam comer qualquer tipo de carne durante a Quaresma – o período de quarenta dias do ano litúrgico cristão que vai da Quarta-feira de Cinzas até Quinta-feira Santa. Portanto, é temporada do peixe na mesa, especialmente do bacalhau, que hoje saboreamos por prazer e no passado por conveniência. Salgado e desidratado, aguenta o transporte, conserva-se por muito tempo e chega em perfeitas condições de consumo aos mais distantes lugares, mantendo as propriedades naturais.

Aprendemos com os portugueses a saborear esse peixe capturado nas águas frias do Mar da Noruega, Canadá e Alasca. Aliás, a palavra bacalhau não designa o animal aquático, mas um processo de salga e secagem aplicado aos cinco tipos de um peixe do gênero Gadus. O nome tem origem incerta. Provavelmente derive do basco bakailao, que veio do escandinavo bakkeljau (bastão de peixe), em alusão à sua aparência, quando adquirido no mercado.

Os portugueses também nos transmitiram inúmeras receitas que criaram com ele – mais de mil, segundo dizem – muitas com nomes divertidos aos nossos ouvidos. A mais irreverente é uma entrada fria chamada Punheta de Bacalhau. Consiste em lascas cruas dessalgadas e servidas com molho de azeite, cebola, alho, salsa e, às vezes, vinagre.

Em princípio, a designação chula seria inocente, devendo-se à montagem do prato, na qual o cozinheiro pressiona o peixe com o punho. Mas o escritor gastronômico lusitano Virgílio Nogueiro Gomes diverge dessa interpretação. Paras ele, “o nome foi dado mais pelo gesto de esfarripar o bacalhau, que se assemelha ao do onanismo”. Ou seja, tem conteúdo maledicente.

Em Salvador, na Bahia, também encontramos uma punheta no receituário culinário. Mas não apresenta relação com a portuguesa. É um bolinho frito à base de tapioca e leite de coco. Dizem que se chama punheta ou punhetinha devido aos movimentos feitos com o punho em seu preparo. Entretanto, ainda se pode   atribuir seu nome debochado ao bom humor dos baianos. A punheta soteropolitana costuma ser “seca”, quando servida pura, ou “molhada”, se passada em açúcar e canela.

O quitute baiano é igualmente batizado de bolinho de estudante, designação rejeitada pelo escritor baiano Jorge Amado. No livro “O Sumiço da Santa” (Companhia das Letras, São Paulo, 2010) ele faz um dos personagens rebater: “Como é mesmo tia Romélia? E tu não sabe menina? Olha que tu sabe muito bem, o nome é punheta, bolinho de estudante é pronúncia de besta!”

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Outra receita que soa intrigante é a do Bacalhau Constipado. No seu preparo, postas do peixe assam nas brasas e são finalizadas com molho de azeite quente, vinagre e colorau. Acompanham batatas cozidas em rodelas. Seu nome, sim, viria claramente do processo de preparo. Cada vez que as postas viram na grelha, são passadas em água fria. Se o choque térmico fosse dado em um ser humano, provocaria constipação nasal.

Há também o Bacalhau à Cobra. Entretanto, ao saboreá-lo ninguém corre o risco de uma picada, até mesmo porque a receita não prevê o temido ofídio.  É elaborado com bacalhau cortado em quadrados, marinado no leite, empanado, frito no azeite e regado com molho de vinho do Porto. Por que, então, chama-se cobra? Talvez evoque uma pessoa de má índole que o teria inventado ou preparado no passado.

Já o nome do Bacalhau à Nabão parece mais fácil de entender. Embora estranho, faz sentido. Refere-se ao rio Nabão, afluente do Zêzere, que passa na cidade de Tomar, na sub-região do Médio Tejo. A receita manda cozinhar o peixe, desfiar em lascas e servir com molho de manteiga, leite, farinha de trigo e gemas.  Portanto, não incorpora nabo, nem foi dado por alguém que estava na naba, ou seja, na pior.

Tem ainda o Bacalhau à Zé do Pipo, apelido de José Valentim, dono de um restaurante tradicional da cidade do Porto e autor da receita. Surgiu na década de 1940 e se tornou famoso por vencer um concurso denominado “a melhor refeição ao melhor preço”. Leva bacalhau, maionese, puré de batata, cebola, leite, azeite, pimentão vermelho, louro e azeitonas, entre outros ingredientes. Finalmente, gratina no forno.

E o que dizer do Bacalhau à Bruxa de Valpaços?  Surgiu na pequena cidade homônima, com cerca de 4.500 habitantes, na região de Trás-os-Montes, inventado por uma mulher chamada Maria de Jesus Mourão. O que fazia na vida: nada. Viveu entre os séculos XIX e XX, sofria de problemas mentais, a ponto de ter sido amarrada e internada à força. Pelas suas excentricidades, ganhou fama de bruxa. Mas era boa cozinheira. A biblioteca de Valpaços guarda seu manuscrito com a receita do apetitoso bacalhau.

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Não faz muito tempo que os portugueses conheceram a receita. Foi difundida nacionalmente pelo livro “As 100 Maneiras de Cozinhar Bacalhau e Outros peixes (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007), de Francisco Guedes. Monta-se o “Bacalhau à Bruxa de Valpaços” em camadas, com cebola, batata, toucinho e temperos; rega-se com azeite e se leva ao fogo em panela de barro.

Os céus também se envolvem em receitas portuguesas, a começar pelo Bacalhau Espiritual. Nada a ver com a imaterialidade. O prato surgiu  aqui na terra mesmo, na década de 1940, no restaurante Cozinha Velha, que ainda funciona nas antigas cozinhas do Palácio de Queluz, perto de Lisboa. Corta-se o peixe em lascas, refoga-se, leva-se ao forno com camadas de pão de fôrma e molho béchamel.

Sua autora foi a condessa Almeida Araújo, concessionária do estabelecimento. Ela nunca  escondeu que se inspirou na Brandade de Morue, joia da cozinha francesa. Os fãs do Bacalhau Espiritual garantem entrar em êxtase ao saboreá-lo – daí o nome transcendente. Favor não achar graça dos nomes incomuns dessas preciosidades da gastronomia lusitana.

RECEITA

PUNHETA DE BACALHAU

Rende cerca de 6 porções

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INGREDIENTES

1/2 kg de bacalhau sem pele e sem espinhas, já dessalgado

2 cebolas grandes (podem ser das roxas) cortadas em finas rodelas

1 dente de alho picado

1 maço de folhas de salsinha picadas

2 colheres (sopa) de vinagre de vinho branco

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2 folhas de louro cortadas em pedaços

Azeitonas portuguesas a gosto

Azeite de oliva para regar

Sal a gosto (se necessário)

ACOMPANHAMENTO

Fatias de broa de milho ligeiramente torradas

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PREPARO

1.Escorra bem o bacalhau e desfie-o em finas tiras. Coloque as tiras dentro de um pano de prato, torcendo-o, para que o bacalhau perca toda a água.

2.Passe o bacalhau para uma tigela e regue-o com um pouco de azeite.

3.Dê um rápido  golpe de água quente nas cebolas e no alho,escorrendo-os em seguida, para que não cozinhem.

4.Acrescente ao bacalhau esses dois ingredientes, junto com a salsinha, o vinagre, o louro e as azeitonas. Misture bem.

5.Cubra e deixe marinar na geladeira por, no mínimo, 12 horas.

4.No dia seguinte, ajuste o sal se for necessário, regue com um pouco mais de azeite e sirva a Punheta de bacalhau fria, sobre as fatias de broa de milho.

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