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Axé, irmão!

Símbolo da cozinha baiana, o acarajé pode ter sido criado em Salvador e não na África, como se pensava

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 20h42 - Publicado em 23 out 2017, 10h50

Os turistas que visitam Salvador se encantam com a comida original e condimentada da capital da Bahia, a começar pelo seu símbolo: o acarajé. São informados de que esse bolinho crocante e sequinho, à base de feijão-fradinho ralado ou moído, cebola, sal, frito no azeite de dendê, servido com os molhos de camarão seco e pimenta-malagueta, foi trazido da África Ocidental, onde se encontram os atuais territórios da Nigéria, Benin e Togo.

É apresentado aos forasteiros como uma especialidade introduzida no Brasil pelos negros da etnia ioruba, atualmente um dos maiores grupos linguísticos em sua região natal, formado por mais de 30 milhões de pessoas. Aportaram aqui em condições desumanas, submetidos à crueldade da escravidão, entre os séculos 16 e 19. Trazidos em massa, chegaram a compor 75% da população da Baía de Todos-os-Santos, da qual Salvador é a porta de entrada.

Os turistas ouvem também que o acarajé integra  o acervo culinário do candomblé, a religião dos escravos, originária justamente da Nigéria, Benin e Togo; que participa do culto aos orixás, divindades com importante papel na doutrina; que esses seres  fazem a intermediação entre os fiéis e a suprema divindade, inacessível às súplicas humanas; que simbolizam forças da natureza e ancestrais.

Diz-se ainda que o acarajé já teria aportado no Brasil com sentido ritual. Para o forte, autoritário, ágil, generoso e sensual rei Xangô, orixá que comanda os trovões e a justiça, destinam-se os bolinhos maiores e alongados; os pequenos e redondos são para a rainha Iansã, uma de suas mulheres, guerreira incansável, orixá dos ventos e tempestades. A palavra acarajé veio da língua ioruba. Resultou da fusão de acará (bola de fogo) e jé (comer), ou seja, significa “comer bola de fogo”.

Ponto de venda do bolinho de feijão-fradinho: há cinco mil na cidade de Salvador (Dias Lopes/Divulgação)

Hoje, designa em Salvador uma popularíssima comida de rua. Seduz os turistas e o povo baiano em geral. É comercializado em cinco mil locais diferentes, sejam ruas, praças ou praias da capital da Bahia. Mas sua venda teria iniciado com motivação religiosa. As filhas de Iansã – mulheres devotadas a esse orixá – preparavam acarajés, acondicionavam os bolinhos de feijão-fradinho em palha de banana e os colocavam em gamelas. Depois, saiam às ruas para oferecê-los.

Com o dinheiro amealhado, adquiriam a matéria-prima de suas obrigações (oferendas aos deuses). Nesse trabalho, vestiam a roupa tradicional: saia comprida e rodada, blusa rendada, xale de algodão colorido, turbante, sandália fechada na frente e aberta atrás e, no pescoço, guias de contas na cor do orixá da sua cabeça ou outros santos de reverência pessoal. Mais tarde, as filhas de Iansã se fixaram em pontos, onde passaram a fritar o acarajé e servi-lo à clientela, sob barracas que as protegiam do sol. Eram e são até agora denominadas baianas de acarajé.

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O bolinho de feijão-fradinho foi mencionado pela primeira vez no livro “Recompilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas”, (Imprensa Oficial da Bahia, Salvador, 1921), escrito pelo português Luiz dos Santos Vilhena, que mudou para a capital baiana em fins de 1787, como professor de grego. O autor registrou o outro motivo da sua comercialização nas ruas. Muitas sinhás (tratamento dado pelos escravos a suas senhoras) aumentavam a renda doméstica obrigando as denominadas escravas de ganho a vender acarajé e outros quitutes de tabuleiro.

Mas os adeptos do candomblé da Bahia se incomodam com os pesquisadores que questionam a origem africana do bolinho de feijão-fradinho. Um desses estudiosos é Guilherme Radel, professor emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele acredita que o bolinho de feijão-fradinho foi criado em Salvador e levado para a África por escravos que conquistaram o direito de retornar à terra ancestral, apelidados de amaros na Nigéria e de agudás no Benin. Obviamente, isso não tira do acarajé a relevância cultural ou ritual e muito menos gastronômica. Entretanto, os adeptos do candomblé desaprovam a versão.

Um dos argumentos de Radel: ao chegarem no Brasil, os negros da África Ocidental desconheciam a fritura. Portanto, não sabiam preparar o acarajé. Sua cozinha se baseava no assado, no tostado e no cozido, usava pouco sal e quase nenhuma hortaliça. Radel acredita que o bolinho de feijão-fradinho e quase toda a culinária baiana – vatapá, caruru, acaçá, bobó, abará etc. – não surgiu na África, nem nos terreiros de candomblé. Sustenta ter nascido na casa dos donos de escravos, portugueses natos ou seus descendentes diretos.

Embora a culinária africana fosse atrasada no século 16, quando começaram a chegar os escravos, as mulheres negras tiveram destacado papel na cozinha mais típica da Bahia. As mucamas – negras requisitadas no Brasil para os serviços na casa-grande do engenho de açúcar ou da fazenda e  no sobrado urbano – revelaram-se incomparáveis no manejo do fogão e do forno.

No livro “A Cozinha Africana no Brasil” (Press Color, Salvador, 2006), Radel deixa claro que os pratos chamados de afro-brasileiros são, na verdade, afro-portugueses. Um exemplo é o vatapá, que descende da açorda lusitana. Teve apenas os ingredientes trocados na Bahia por produtos locais e passou a ir ao fogo, ao contrário da receita inspiradora. O mesmo sucedeu com o caruru, um cozido que deriva do esparregado (guisado de ervas cozidas, picadas e espremidas) português. Ilustrativamente, o vatapá e o caruru não existem na África.

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Radel visitou a Nigéria em 2002 e encontrou o acarajé em Lagos, na costa do Oceano Atlântico, a maior cidade do país. “Suas casas antigas se parecem com a de Salvador”, compara. “Em Lagos, os negros que regressaram introduziram até a Festa do Senhor do Bonfim”. Radel se refere à liturgia que acontece em Salvador no segundo domingo depois do Dia de Reis, no mês de janeiro. Em Benin sucede   o mesmo. Festeja-se igualmente o carnaval e se prepara a feijoada ou kosidou (corruptela de cozido).

Enfim, ele lembra que a culinária afro-baiana começou antes da abertura do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca, na década de 1830, primeiro terreiro de candomblé em Salvador. “Portanto, só no século XIX ela se transformou na cozinha dos deuses”, sublinha Radel. Conclusão: foram as mucamas, filhas dos orixás, que levaram a cozinha típica para os terreiros de candomblé, onde o bolinho de feijão-fradinho caiu em solo fértil e começou a se transformar na celebridade atual. Axé, irmão!

RECEITA: ACARAJÉ – Rende cerca de 40 acarajés

INGREDIENTES

2 kg de feijão-fradinho

4 cebolas

3 litros de azeite de dendê para a fritura

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Sal a gosto

Molhos de pimenta-malagueta e de camarão seco para rechear os acarajés

PREPARO

1. Escolha o feijão e deixe-o de molho por uma hora ou duas.

2. Tire todos os olhos pretos e descarte todas as cascas que saíram durante o tempo em que ficou de molho.

3. Passe o feijão pela máquina de moer, até obter uma massa.

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4. Coloque a massa numa panela e bata-a com uma colher de pau, até ficar uniforme.

5. Triture a cebola no liquidificador com o sal a gosto e misture-a à massa do feijão. Continue batendo a massa com a colher de pau, até obter um composto macio e o mais claro possível.

6. Quanto mais leve a massa ficar, mais saboroso será o acarajé.

7. Deite o azeite de dendê no tacho ou numa panela de fundo grosso e leve-o para aquecer.

8. Vá formando bolos com a massa e fritando-os no óleo bem quente até ficarem com uma crosta de coloração dourada, em tons de vermelho.

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9. Abra-os ao meio antes de esfriarem, pois assim ficarão crocantes. Recheie-os com os molhos de camarão seco e pimenta-malagueta.

(*) Receita da ABAM – Associação Nacional das Baianas de Acarajé, com sede em Salvador, na Bahia.

 

 

 

 

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