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A rainha louca

Histórias e agruras de D. Maria I, mãe de D. João VI e avó de D. Pedro I, mais lembrada no Brasil pelo fato de terminar a vida em desequilíbrio mental

Por J.A. Dias Lopes 19 set 2018, 00h17

Quando fugiram das tropas de Napoleão Bonaparte que avançavam sobre Lisboa, o então regente do reino D. João e sua mulher, D. Carlota Joaquina, e a mãe do príncipe herdeiro, D. Maria I, rainha de Portugal, juntamente com a corte numerosa, enfrentaram 24 horas de atropelos e confusões. Era um mar de gente. Algo entre 10 000 e 15 000 pessoas se espremeram em 8 naus, 3 fragatas, 2 brigues, 1 escuna, 1 charrua de mantimentos e 21 navios mercantes, além dos 4 navios de guerra britânicos da escolta.

Segundo Laurentino Gomes, no best-seller 1808 (Editora Planeta, São Paulo, 2007), somente na nau capitânia, que levava D. João e a mãe, apertavam-se 1054 pessoas. A única pessoa a aparentar tranquilidade naquele momento foi uma mulher louca, exatamente a rainha D. Maria. Ela teria interrompido seus gritos de insanidade, ao ser colocada a força na embarcação, pois se recusava partir, para pedir aos acompanhantes: “Não corram tanto, vão pensar que estamos a fugir”.

D. Maria foi considerada irreversivelmente louca em 1792, ano em que o segundo filho, D. João, precisou tomar conta do governo do reino. Contribuíram para torná-la mentalmente instável as mortes do seu primogênito, herdeiro do trono, e do marido. Também pesou o pavor da soberana à revolução que derrubou a monarquia na França e não parava de guilhotinar os nobres daquele país. No mesmo ano da admissão da sua doença, Luís XVI e Maria Antonieta foram capturados ao tentarem fugir do país, aprisionados e depois executados.

Abalada pela notícia, ela enviou 2 milhões de cruzados à causa da monarquia francesa. Desde então, seu estado de saúde só piorou, assinalado por crises de melancolia, insônia, pensamento confuso, delírios, alucinações visuais e auditivas, “dores de estômago e espasmos abdominais”.

Revelaram-se inúteis os esforços dos médicos lusitanos para recuperar a sanidade mental de D. Maria. Nem as “sangrias”, recursos terapêuticos brutais vindos da Idade Média, surtiam qualquer resultado. Então, a família real portuguesa chamou o médico inglês Francis Willis, que tratara de Jorge III, do Reino Unido, outro rei cujo juízo foi embora.

O atendimento custou uma fortuna ao governo português e igualmemente não deu em nada. Doutor Willis submeteu D. Maria a procedimentos ainda mais agressivos: colete de forças para tolher os movimentos dos braços, banhos em água gelada para conter os acessos de insanidade, por exemplo. Em menos de quatro meses, porém, ele chegou à conclusão de que D. Maria sofria “de algum tipo de doença imune aos tratamentos”.

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No livro 1808, Laurentino Gomes levanta a hipótese de D. Maria ter sido vítima de porfiria variegata, “doença hereditária de sintomas semelhantes aos da esquizofrenia e da psicose maníaco-depressiva”, que a tornou completamente incapacitada para governar. Daí ter sido substituída pelo filho, o então príncipe e futuro rei D. João VI, de Portugal e do Brasil. Outros a acreditam vitima de uma verdadeira esquizofrenia, perturbação mental caracterizada por comportamento social fora do normal e incapacidade de distinguir o que é ou não real.

Com os olhos vermelhos de tanto urrar, acreditando ver figuras calcinadas e demônios horrorosos (“Vão para o inferno, olhem o diabo, olhem o diabo!”, gritava) e preocupada obsessivamente com a salvação da sua alma, D. Maria desembarcou no Brasil em 1808 e aqui morreu em 1816, aos 81 anos de idade, no Convento do Carmo, do Rio de Janeiro. Em 1821, seus restos mortais foram transladados para Lisboa.

Sua vida no Brasil era completamente reclusa. Paulo Setúbal, no livro Nos Bastidores da História (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1983), relata qur ela acordava às oito da manhã, era vestida pelas camareiras, que lhe traziam a seguir o almoço. Depois, sentavam-na em um canapé (espécie de sofá), onde esperava a visita de D. João e às vezes da mulher do então príncipe regente, D. Carlota Joaquina. “O filho ajoelhava-se para beijar-lhe a mão; mas a nora, muito orgulhosa, beijava-lhe a mão em pé”, conta Setúbal.

O autor de Nos Bastidores da História também registra a profunda ternura de D. Maria para com o neto D. Pedro, futuro imperador do Brasil. Ao recebê-lo, revelava lampejos de lucidez. “Quando (D. Pedro) se ajoelhava para beijar-lhe as mãos, ela coçava-lhe a cabeça, esfregava-lhe os cabelos e dizia muito doce: para este há de ser a minha coroa”, diz Setúbal.

Todas as tardes, um pequeno séquito de damas, lacaios e cadetes batedores levava D. Maria para para passear no Rio de Janeiro. Acomodavam-na em uma carruagem dourada e a conduziam até o antigo bairro de Águas Férreas, atual Cosme Velho. As pessoas que cruzavam com a rainha na rua curvavam o joelho, enquanto ela afirmava alucinada: “Vou para o inferno, estou no inferno”.

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Brasil Gerson, no livro Histórias das Ruas do Rio (Editora Brasiliana, Rio de Janeiro, 1965) acredita que o substantivo “maria vai com as outras”, com o significado atual de pessoa sem vontade, que se deixa levar pelas outras, originou-se nesses passeios.

Ao ver a rainha conduzida por suas damas, o povo comentava: D. Maria vai com as outras.

Como a conhecemos sem a razão, até hoje a chamamos de “a Louca”. Os portugueses, porém, falam “a Piedosa”. Recordam o tempo em que tinha saúde mental, a sua profunda fé católica, a dedicação à obras sociais, a libertação de presos que nunca haviam sido julgados. No seu governo, o comércio e a indústria prosperaram, as letras, as artes e mesmo as ciências avançaram.

D. Maria subiu ao trono em substituição ao pai, D. José I, por ser a mais velha das cinco filhas do soberano, e uma das medidas que tomou foi a destituição do Marquês de Pombal, afastando-o de todos os cargos oficiais. O influente primeiro-ministro havia cometido o equívoco imperdoável de tentar introduzir em Portugal uma lei sálica, pela qual as mulheres da Casa de Bragança seriam excluídas da sucessão do trono. D. José não teve filhos homens.

A mudança na legislação impediria que D. Maria colocasse na própria cabeça a coroa lusitana e se tornasse a primeira rainha reinante de Portugal. Ela subiu ao trono primeiro ao lado do marido e tio D. Pedro III; depois, ficou sozinha com a morte dele. Alta e delgada, inteligente e educada, a rainha se interessava por literatura, música e pintura.

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As camas, papeleiras, cômodas, cadeiras etc., em estilo sóbrio e requintado, desenhadas pelo inglês Thomas Sheraton, que chegaram a Portugal e Brasil entre 1780 e 1825, foram batizadas de “estilo D. Maria I”, em homenagem ao bom gosto da soberana lusitana. O mesmo aconteceu com uma linha de talheres em prata portuguesa.

Aliás, D. Maria gostava de comer bem. Para cuidar da sua cozinha, ela e o marido contrataram o chef Lucas Rigaud, supostamente de nacionalidade francesa, tarimbado em cortes importantes da Europa: Paris, Londres, Turim, Nápoles e Madri. João Pedro Ferro, no livro Arqueologia dos Hábitos Alimentares (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996), diz que chegou à corte em 1744 e, em 1762, naturalizou-se cidadão português.

Rigaud modernizou a arcaica e pesada culinária do país, sobretudo com o lançamento, em 1780, do livro “Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha”. Contém 62 receitas de caldos e sopas, sendo 13 voltadas à saúde (para dores de cabeça, para doenças do peito, para purificar o sangue etc.), 24 de lagosta, ostra e marisco, 7 de perdiz, 18 de pombo, 15 de frango, 33 de galinha, capão e frangão, 31 de peru, 20 de lebre e coelho, 12 de cabrito e cordeiro, 19 de porco, 18 de carneiro, 44 de vitelo, e 36 de vaca. Também ensina a fazer ovos, empadas, tortas, molhos, ragus, a conservar frutas e outros alimentos, bem como a preparar doces, entre os quais fatias, geleias, pudins, pães de ló e bolos.

O grande cozinheiro afrancesou a cozinha portuguesa. Aboliu ou minimizou o uso de especiarias de gosto medieval, como o açafrão, anis, cominho, cravo-da-índia, gengibre, malagueta e noz-moscada, entre outras. Introduziu temperos menos agressivos: alecrim, cerefólio, funcho, estragão etc. Tinha, porém, um gosto pela manteiga, que integra aproximadamente 60% das suas receitas.

Alfredo Saramago, no prefácio da última edição do Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha (Colares Editora, de Sintra, 1999), elogia o talento do chef estrangeiro, mas sustenta que ele não teria feito tanto sucesso “não fosse a ideia de publicar as receitas que exercitava no palácio real”. Referiu-se obviamente à refinada patroa de Rigaud, a rainha D. Maria, que nós, brasileiros, preferimos tratar como louca.

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FATIAS À POMPADOUR

Rende 12 fatias

INGREDIENTES

.12 fatias (com cerca de 3cm de espessura) de pão amanhecido

.Vinho Madeira o quanto baste para molhar o pão

.6 gemas de ovos

.3 claras de ovos

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.Manteiga clarificada o quanto baste para a fritura (*)

ACOMPANHAMENTO

.Calda leve, preparada com vinho do Reno, açúcar e reduzida em fogo brando, até dar o ponto desejado

PREPARO

1. Coloque as fatias de pão de molho no vinho Madeira, por alguns minutos.

2. Em uma tigela, bata as gemas com as claras.

3. Retire as fatias do vinho do Porto, escorra-as, passe-as nos ovos batidos e frite-as rapidamente na manteiga clarificada, sem completar todo o processo de fritura.

4. Repita o procedimento por mais duas vezes, passando as fatias nos ovos batidos e depois fritando-as na manteiga, dos dois lados, até ficarem bem douradas.

5. Após, escorra as fatias em papel-toalha.

(*) Para clarificar, derreta lentamente a manteiga em fogo baixo, sem mexer. Tire do fogo e descarte, cuidadosamente, com uma colher, a espuma que se formou na superfície. Deixe a manteiga sedimentar por uns cinco minutos em temperatura ambiente e utilize-a, deixando de lado o depósito que se formou na parte de baixo.

Receita do livro Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, de Lucas Rigaud

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