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A adega do czar

Fornecedora de vinhos para Nicolau II, assassinado brutalmente em 1918, Massandra nunca parou de abastecer o cálice dos dirigentes russos.

Por J.A. Dias Lopes 27 jun 2018, 20h36

O último czar da Rússia, Nicolau II (1868-1918), que os bolcheviques trucidaram com a família cem anos atrás, era um grande apreciador de bons vinhos. Importava da França o champagne Cristal e os melhores tintos de Bordeaux; de Portugal, encomendava Porto e Madeira. Gostava tanto de vinhos que patrocinou a fundação de uma enorme vinícola ou cave na Crimeia, em 1894, construída pelo príncipe Knyaz Lev Goltsyn, nascido em uma família nobre originária do Ducado da Lituânia. Assim surgiu  a Adega de Massandra, até hoje uma das maiores do mundo, na famosa península da costa do norte do mar Negro, pelo qual é cercada quase completamente.

Localiza-se no município de Yalta, onde se realizou a conferência que reuniu em 1945 os chefs de governo dos Estados Unidos e da antiga União Soviética, junto com o primeiro-ministro do Reino Unido, para decidir o fim da Segunda Guerra Mundial e a repartição das zonas de influência entre o Oeste e o Leste. As uvas dos vinhos de Massandra procedem sobretudo dos vinhedos da zona, especialmente dos cultivados em Livadia. Ali, a natureza é pródiga: entre tantas virtudes, fornece em média 300 dias de sol por ano, que garantem a perfeita maturação das frutas.

A finalidade principal de Massandra era fornecer vinhos para o palácio de verão de Nicolau II, erguido justamente em Livadia, por sinal o local exato da Conferência de Yalta. A monumental cave foi dotada de mais de três quilômetros de túneis abertos na rocha por legiões de garimpeiros. Atualmente, guarda cerca de um milhão de garrafas com nomes diferentes. Conserva brancos, rosados e tintos, velhos e novos, chamados de Tokay, Sherry, Kagor etc.

As garrafas veteranas se encontram completamente empoeiradas e algumas ostentam no vidro a águia de duas cabeças do brasão do czar. Como se sabe, a temperatura ideal para se guardar brancos, rosados e tintos vai de 10º a 18º centígrados. As modernas adegas controladas por sistemas eletrônicos são climatizadas para mantê-los assim. Em Massandra, a temperatura dispensa o uso de qualquer equipamento: oscila naturalmente entre os 13 e 14 graus. É quase inacreditável, pois varia apenas um grau durante o ano.

Depois da tomada do poder, os bolcheviques – palavra de origem russa que significa “maioria” e denomina os seguidores do partido revolucionário comunista liderado por Lenin –  empenharam-se em destruir tudo o que se referisse positivamente ao czar. A Adega de Massandra, porém, foi poupada da demolição. Estatizada em 1922, recebeu proteção estatal de uma lei de 1936.

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O ditador Joseph Stalin, que governou a extinta União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial, gostava muito dos seus vinhos. Quando o exército nazista de Adolf Hitler invadiu o país, mandou esconder 60 mil garrafas de Massandra. Enviou-as para Tbilisi, capital e a maior cidade da Geórgia, a cerca de 1230 quilômetros de distância. Derrotados os alemães, devolveu-as ao berço natal.

Na década de 1980, Mikhail Gorbachev aprovou leis severas de combate ao alcoolismo. Uma das medidas draconianas foi arrancar vinhedos e fechar adegas. Massandra permaneceu intocada. Em 1987, Gorbachev requisitou vinhos do ano do nascimento de Ronald Reagan, ou seja, da safra de 1911, para oferecer ao presidente americano que visitava a Rússia. As garrafas desembarcaram em Moscou. Entretanto, não foram entregues a Reagan. Os russos brincaram que Gorbachev descobriu a tempo as verdadeiras preferências de Reagan: o presidente americano devorava sem parar jujubas, as balinhas de goma adoradas pelas crianças, e era bebedor de Coca-Cola.

Os vinhos tranquilos de Massandra também estão entre os mais longevos. Ultrapassam serenamente o centenário. Os preços dos mais antigos são evidentemente espaciais. Em abril deste ano, a corretora Fine & Rare Wines, de Londres, oferecia no seu site (https://www.frw.co.uk/) um Livadia Muscat Branco 1900 pelo equivalente a R$ 11.000,00, mais o imposto sobre o valor acrescentado aplicado no país (IVA). Era feito com uma uva célebre. A Muscat, Moscato ou ou Moscatel como a chamam em diferentes regiões do mundo, constitui uma variedade branca bastante antiga. Com ela são elaborados vinhos de alta qualidade, nos estilos doce ou fortificado.

Segundo a jornalista, escritora e crítica de vinhos britânica Jancis Robinson, que escreve uma coluna semanal para o Financial Times, de Londres, e mantem um site atualizado diariamente (https://www.jancisrobinson.com/), “as videiras de Livadia fornecem os melhores vinhos de Massandra, entre os quais um Muscat pálido, doce e de longa vida, que tem gosto de essência de casca de laranja”. O Ocidente teve acesso a essas joias em 1990, quando a Sotheby’s, uma sociedade de vendas por leilão com sede na capital do Reino Unido, vendeu uma coleção de garrafas enviadas por Gorbachev para reforçar suas finanças. Um segundo leilão foi realizado em 1991.

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“Os vinhos eram enviados em caixas de metal que pareciam enormes arquivos de metal”, lembra Jancis Robinson, que testemunhou a chegada do tesouro. O ex-banqueiro brasileiro Edmar Cid Ferreira, de São Paulo, conhecido por ter sido dirigente do extinto Banco Santos e pela antiga coleção de arte, adquiriu uma quantidade não revelada, mas que seria uma dúzia de garrafas, em feito noticiado pela revista britânica “Decanter”.

O médico, experiente e conceituado degustador paulista José Ruy Sampaio teve o privilégio de beber com ele e amigos de copo um Livadia Muscat Branco 1905. Relatou a experiência rara em uma sala da casa do anfitrião, decorada com quadros de Cândido Portinari e Di Cavalcanti, em artigo publicado na revista Gula (Edição nº 07, página 12, setembro de 1992, São Paulo, SP): “Jamais esquecerei aquele vinho”, escreveu ele.

”As sensações que me provocou ficarão gravadas para sempre na minha memória gustativa. E, acima de tudo, protegidas do mundo exterior com o mesmo zelo com que a integridade de sua garrafa foi assegurada, primeiro pelos cossacos de Nicolau II, depois pelos agentes da KGB”. Depois, acrescentou: “O Livadia Muscat Branco nasce com 30 gramas de açúcar residual e 12,5 graus alcoólicos. É um vinho doce, de sobremesa, que pode ser bebido como aperitivo de fino gosto”.

Os vinhos da Adega de Massandra, que continuam a ser elaborados – a produção não parou sequer durante a Revolução de 1917, quando os comunistas chegaram ao poder – continuam a ser feitos em massa. São 10 milhões de garrafas por ano, oferecidas a preços atraentes e consumidas pelo povo russo. O atual presidente do país, Vladimir Putin, se abastece ocasionalmente das suas preciosidades, como acontecia com os dirigentes que o antecederam. O ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi foi com ele visitá-la em 2015. Contou que Vladimir Putin a chamou na ocasião, entre goles de um vinho antiquíssimo, de Adega do Czar.

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