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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Ser e não ser, eis a resposta (e a sentença) de Stálin

Mal chego a Sotchi e já me dirijo à datcha (casa de veraneio) em que o ditador Ióssif Stálin costumava passar os meses de agosto, setembro e outubro

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 10 jul 2018, 09h58

Nas últimas 3 horas de viagem, o trem que me leva de Rostov-sobre-o-Don a Sotchi vai margeando as praias de areia escura e pedras polimorfas do Mar Negro.

Por vezes, os gritos efusivos da criançada a se esbaldar na água tensionam a cadência monocórdia do trem pelas infindáveis bitolas do trilho.

Sem ser polvilhado por nuvens e de vez em quando singrado por gaivotas, o céu de um azul claríssimo contrasta com as águas escuras e brilhantes como o dorso de uma pantera.

Súbito, o Mar Negro caucasiano, outrora balneário dos líderes soviéticos, me remete a uma colocação do argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) sobre a luta de classes que o mar anima (e naufraga) em seu bojo.

Em sua imensidão somente comparável à virtual infinitude do horizonte, o mar não poderia ser mais rico.

Em sua monotonia de formigueiro composta de marolas e marés sempre idênticas e reiteradas, o mar não poderia ser mais pobre.

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Do outro lado do trilho, uma vegetação densa e cerrada transforma o Cáucaso na Mata Atlântica da minha adolescência que entremeava as descidas para o litoral sul de São Paulo. (Só faltam as chaminés fosforescentes de Cubatão e caiçaras vivazes vendendo espetinhos de siri.)

Mal chego a Sotchi e já me dirijo à datcha (casa de veraneio) em que o ditador Ióssif Stálin (1878-1953) costumava passar os meses de agosto, setembro e outubro.

Segundo o caucasiano Oleg, que trabalha na manutenção da datcha há mais de 15 anos, Stálin tinha à sua disposição 17 casas de veraneio, mas o bolchevique só chegou a viver efetivamente em 5 delas: duas na hoje República Autônoma da Abecásia, ao norte da Geórgia (uma delas, por sinal, banhada pelo lago Ritsa); duas em Moscou; e (Oleg fala com orgulho) “esta datcha aqui em Sotchi, a maior e mais bonita de todas”.

Quem chega ao jardim frondoso da datcha se vê circundado (ou melhor, enquadrado) por quatro arestas de uma casa de dois andares e tom verde suave. É como se, através das numerosas janelas com entalhes de madeira, Stálin quisesse entrever (e capturar) a chegada de quaisquer visitantes/potenciais invasores.

Jardim central da datcha de Stálin em Sotchi (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

Girassóis sumamente amarelos e convidativos – será que Stálin convenceu/coagiu o pintor holandês Vincent Van Gogh (1853-1890) a se filiar ao
Partido Comunista? – se veem entremeados por arbustos bem podados, pequenas flores róseas e esbranquiçadas, com pétalas suaves a serem levadas pela brisa, e árvores altivas e sem galhos, encimadas por folhas longilíneas e pontiagudas como as lâminas de uma tesoura – ou de um punhal georgiano da juventude de Stálin, quando o bolchevique costumava roubar (isto é, expropriar) bancos para a causa da revolução. [Consta que, entre uma baforada e outra de seus onipresentes cachimbos, Stálin deu boas risadas sob seu vasto bigode quando seus oniscientes canais de (contra)espionagem o informaram de uma máxima forjada pelo poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956): “O que é o crime de assaltar um banco comparado com o crime de fundar um banco?”]

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Diz Oleg que Stálin, como rematado caucasiano, gostava de caçar ursos pelo amplo perímetro da datcha. Ademais, o ditador apreciava alimentar pequenos esquilos que deslizavam até a varanda traseira da casa de veraneio pelos galhos de enormes árvores ali postadas como sentinelas.

Quando entro na primeira ala da datcha, deparo com um tapete (persa?) bem vermelho e repleto de ornamentos ladeado por paredes revestidas de madeira (e forradas de escutas?). Acarpetada, a escada conduzida por um corrimão bojudo desemboca em uma sala de jantar/reuniões ao centro da qual se posta uma mesa retangular para 10 gerontocratas soviéticos. Pairando sobre a mesa, retratos de Stálin, invariavelmente fardado com seu uniforme de marechal, sentenciam que o líder era na verdade uma Ideia – a bem dizer, uma Instituição: “O Estado (e o Gulag siberiano) sou eu”.

Sala de jantar-reuniões para a gerontocracia soviética (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)
Retrato de Stálin, para quem ‘o Estado – e o Gulag siberiano – sou eu’ (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

As cicatrizes de varíola que salpicavam o rosto do bolchevique eram esteticamente removidas de todos e quaisquer retratos, e Stálin, qual um avô charmoso, recebia tons de grisalho pelos cabelos e bigode pretos para que a idade inspirasse um caráter (ainda) mais sábio e visionário a seu olhar via de regra longínquo.

Em uma sala ao lado, através de cuja cortina semitranslúcida a luz penetra com vagar (e temor), duas cadeiras de vime se postam diante de um enorme tabuleiro de xadrez, com peças megalômanas que mais parecem anões. A cavalaria das peças negras, a mando de Stálin, já se prepara para dar o bote na rainha/tsarina. Por ora (mas não por muito tempo), o rei/tsar ainda recebe as bênçãos e os consolos tão tranquilizadores quanto impotentes de seu bispo. (Mal sabem eles que até os peões bolcheviques estão prontos para o ataque.)

Tabuleiro e peças de xadrez megalômanos de Stálin (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

Diz Oleg que Stálin jamais perdeu uma partida de xadrez. (Alguém consegue imaginar que o ditador que dizimou toda a liderança da Revolução de 1917 e escravizou/expurgou milhões de inocentes aceitaria, de bom grado, um xeque-mate?)

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Quando descemos alguns lances algo labirínticos de escada e chegamos à piscina aquecida de Stálin, começo a entreouvir vozes em acalorada discussão através das frestas das janelas de madeira cerradas.

As vozes algo roucas porém enérgicas parecem vir de dois velhos sentados em algum banco do pequeno jardim que há atrás da datcha.

– Ora, Vladimir Vladímirovitch, deixe de asneiras – pare de referendar a propaganda dos Estados Unidos: nós dois sabemos que Stálin foi uma personagem histórica sumamente trágica.

– Que o digam seus milhões e milhões de vítimas inocentes, Mikhail Fiódorovitch!

– Mas que bela alma você tem, não? Então me diga, meu bom samaritano: quando é que a história chegou a cozinhar omeletes sem quebrar ovos?

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– Seu argumento é bem perigoso, Vladimir Vladímirovitch: com ele você acaba legitimando todas e quaisquer barbaridades como se elas tivessem sido a única opção – a bem dizer, como se elas tivessem sido radicalmente necessárias. Assim, o fuzilamento da elite revolucionária e o cerceamento das artes; a coletivização forçada das propriedades agrícolas e a inanição no campo; os expurgos e os campos de trabalhos forçados – todos esses ovos da serpente, segundo a sua (pato)lógica, tiveram que ser chocados pelo estalinismo. Com isso, minha cara viúva de Stálin, a história se transforma em um processo unívoco e linear (uma verdadeira hagiografia), ao longo do qual as tendências que se mostraram hegemônicas determinam como concatenar (e legitimar) todos e cada um dos eventos passados.

– Mas veja só, Mikhail Fiódorovitch, sua bela alma assume traços praticamente angelicais. É como se, para você, a história fosse um processo realmente repleto de contingências, aberturas e possibilidades – mas que coisa sublime, meu caro! Até parece que os interesses mais sórdidos, covardes e mesquinhos não têm movido a história desde que o primeiro hominídeo descobriu que poderia transformar um fêmur de bisão
em arma de guerra para submeter e pilhar mais e mais territórios. Ora, mas o que é que você queria? Que, após ter vencido a longa e sangrenta  guerra civil que os partidários do tsar e as potências capitalistas estrangeiras moveram contra o nosso país socialista, Stálin quisesse pulverizar o poder entre a elite revolucionária para que a anarquia implodisse a União Soviética? Você prefere se embeber de ideias idílicas a se lembrar
das lições que a história lega. Do contrário, você teria em mente que, aqui na Rússia, o espectro de Ivan, o Terrível – o tsar que assassinou seu próprio filho a conspirar pelo trono – vem dando o tom para os duelos intestinos para a tomada e a manutenção do poder. Você e eu gostaríamos que as coisas não fossem dessa forma, não é mesmo? Ora, meu caro, venhamos e convenhamos: nossa idade bíblica já cruzou o Cabo da Boa Esperança para que nos iludamos em desviar os olhos dos horrores que a história impõe como balizas da realidade. Ademais, quando você menciona a coletivização forçada da agricultura e a fome no campo, os expurgos e os campos para trabalhos forçados, eu chego a sentir náusea, Mikhail Fiódorovitch!

– Náusea era o que as vítimas do estalinismo sequer podiam sentir, Vladimir Vladímirovitch, tomadas pelo horror e pela prostração da completa impotência como elas estavam.

– Pois muito bem: sua defesa dos direitos civis e da democracia é realmente deslumbrante e comovente, Mikhail Fiódorovitch. Qualquer um que olhasse para o Ocidente agora – a despeito da odiosa ofensiva da extrema direita xenófoba e racista na Europa e nos Estados Unidos – diria que a democracia liberal é o exemplo a ser seguido. Só que, se você escavar a história ocidental e alcançar seu subsolo e suas masmorras fétidos, vai encontrar o sistema colonial e a escravidão, a pirataria e a pilhagem como os antecedentes criminais da modernidade burguesa. E outra coisa: você
acha que os antigos servos do feudalismo europeu, que acabaram expulsos de suas terrinhas ancestrais pela brutalidade dos latifúndios, sabiam o que era trabalhar em cidades no sentido capitalista? Os servos trabalhavam sazonalmente, eles aravam a terra segundo o metabolismo da semeadura e da colheita. Ocorre que a moderna indústria requer trabalho rotineiro e longevo, horas e mais horas de disciplina massacrante – e como é que você ensina tudo isso ao populacho rústico e ignaro senão sob a ponta do chicote e da baioneta? As plantas das indústrias originais, como você bem sabe, foram os moldes para os primeiros presídios: do alto de suas guaritas de vigilância, os capitães da indústria coagiam os servos reduzidos a proletários a aprender, de avós reumáticos a netinhos trêmulos, como e com quantos paus se faz uma canoa. Os europeus tiveram séculos de maturação para todo esse processo, Mikhail Fiódorovitch – a introjeção imemorial de toda essa violência foi naturalizando (e abençoando) a barbárie como a
reprodução mesma do cotidiano. Por séculos e séculos, amém! Aqui na nossa Rússia, porém, nós tivemos que dar um salto mortal e radicalmente abrupto do capitalismo feudal dos tsares, em meio ao qual os camponeses analfabetos sequer sabiam o que era contar as horas do dia para além do ciclo do sol, para a moderna indústria da paz e, sobretudo, da guerra. Ora, se a agricultura não fosse coletivizada e se os grãos não fossem pilhados e entregues aos comissários do Partido, como é que os proletários da nossa indústria de base teriam sido alimentados? Sem a rapina do campo para o fortalecimento das cidades e sua pujança econômica, como é que levantaríamos as barricadas da nossa Revolução de Outubro contra os invasores estrangeiros durante a guerra civil e, 20 anos depois, contra os piratas fascistas? Por fim, meu caro, os artistas soviéticos precisavam entender que, se o homem e a mulher socialistas não existiam no presente (e nunca haviam existido na história), era preciso insuflar uma nova fé no povo após a morte de Deus. A arte precisava substituir a religião secular para a criação do mito de um novo ser humano abnegado e altruísta – e quem melhor do que os poetas e os escritores, os pintores e os escultores, os musicistas e os cineastas para encarnar o papel de sacerdotes sem Deus?

– Em verdade, em verdade eu lhe digo, Vladimir Vladímirovitch: com a sua (pato)lógica digna dos sofistas contra os quais o velho Sócrates se batia, sou capaz de dizer que, se fosse preciso justificar todas e cada uma das atrocidades de Hitler, você acabaria encontrando pressupostos e matizes para convencer até mesmo o diabo.

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– Pois então saiba, Mikhail Fiódorovitch, que o escritor e jornalista satírico Karl Kraus, cujo humor histórico-existencial era afiado como uma adaga, certa vez sentenciou que o diabo é um otimista se imagina que pode tornar os homens piores do que eles já são. Ademais, se fosse preciso encontrar justificativas para o facínora Adolf Hitler, não seria eu a fazê-lo, uma vez que nós dois, velhos soldados do Exército Vermelho, já teríamos sido asfixiados em câmaras de gás. Sendo assim, minha cara bela alma Mikhail Fiódorovitch, em verdade, em verdade eu lhe digo: quando você se
lembrar de que, em termos históricos, a subjugação de povos militarmente mais fracos, o estupro fruto do butim e a escravidão são os padrastos do crescei e multiplicai-vos que gerou o contato interétnico e a miscigenação; quando você tiver em mente que, sobre os escombros do odioso absolutismo monárquico, a guilhotina pariu a república e o direito constitucional modernos, será possível entender Stálin como uma personagem
efetivamente trágica, para quem só restava submeter os inimigos poderosos e encarniçados à tortura da velha máxima de Hamlet: “Ser ou não ser, eis a questão?” Não! Ser e não ser – eis a resposta (e a sentença) de Stálin.

 

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