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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Réquiem para Stalingrado: Matarás o próximo como a ti mesmo

Todos os escombros do mundo – grandes e pequenos, irregulares e reiterados – se acumulam e se transformam na cidade

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 30 jun 2018, 08h00

Acabei de acordar, suado e palpitante, como se o coração estivesse martelando o esterno: sonhei com Stalingrado, cidade para onde eu vou daqui a dois dias; cidade-síntese para o front mais letal da história das guerras; cidade cuja batalha disputada rua a rua, ruína a ruína, soldado a soldado começou a reverter o curso da Segunda Guerra Mundial contra os piratas nazistas.

Stalingrado está toda asfixiada pelos caças e tanques – a mão-garrote enforca o pescoço das estradas, o coturno cheio de lama pisa sobre o graveto frágil da sobrevivência.

Todos os escombros do mundo – grandes e pequenos, irregulares e reiterados – se acumulam e se transformam em Stalingrado.

Escombros fumegantes – escombros, sobretudo, fumegantes.

Não há trégua sequer entre a fumaça e as nuvens.

Escombros e corpos cubistas.

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Fogo.

O magnetismo dúbio das labaredas: fogo vivaz, fogo letal; fogo que acalenta, fogo que carboniza.

Caminho a esmo entre as ruínas – as balas me matam uma, duas, três vezes.

E ali, no centro de uma pracinha, junto a um chafariz que resiste, junto às quase-estátuas de criancinhas petrificadas que dão as mãos ao redor de um crocodilo lúdico que antes cuspia água, ali eu entrevejo uma mão trêmula, uma mão em súplica: alguém sobrevive entre as ruínas.

Chafariz lúdico de Stalingrado, atual Volgogrado, em meio à Segunda Guerra Mundial (Emmanuil Yevzerikhin/Reprodução)

Se urrar por socorro, o sobrevivente será executado sumariamente.

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Se conseguir calar o desespero e a dor lancinante, o sobrevivente assistirá, segundo a segundo, ao próprio naufrágio.

Como a guerra nos quer répteis, rastejo até o sobrevivente, me esgueiro até seu corpo-túmulo.

Quando alcanço o braço quebradiço do sobrevivente – não mais que um graveto, um esqueleto ainda recoberto de pele –, me dou conta de que o soldado soviético, há pouco tempo, ainda brincava com soldadinhos de chumbo: um menino de olhos fundos e vazios como um poço.

Com a mão esquerda, ele puxa meu colarinho – “pelo amor de Deus!”

Com a mão direita, ele tenta estancar o umbigo hemorrágico – “pelo amor de Deus!”

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(Em meio ao sonho, eu ainda consigo imaginar que, se o soldado soviético fosse uma meia, seria possível virá-lo do avesso; o umbigo sangrento, então, daria lugar ao cordão umbilical.)

– Pelo amor de Deus! – ele grita com mais força, ele grita com mais fúria (eu vejo, eu sinto, eu toco o resquício de vida sendo expelido pelo grito).

O menino cospe sangue – sua mão esquerda exige que eu me debruce para auscultar sua última súplica:

– Pega aquele revólver – ali, ali… Pelo amor de Deus, me mata agora, acaba com essa dor terrível: me mata já!

A misericórdia, em Stalingrado, embaralha as ruínas dos Dez Mandamentos, de Moisés, e do Sermão da Montanha, de Cristo.

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Não matarás?

Amarás o próximo como a ti mesmo?

– Pega aquele revólver – ali, ali… Pelo amor de Deus, me mata agora, acaba com essa dor terrível: me mata já!

Matarás o próximo como a ti mesmo – eis a misericórdia em Stalingrado.

Faço menção de apontar o revólver para sua têmpora esquerda, mas o menino fardado leva a arma até o coração. (Ele quer ser explodido como o casebre que soterrou sua mãe.)

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– Pelo amor de Deus, chega de dor, deixa a morte me salvar – me mata agora, por piedade, me mata logo!

Fecho os olhos (por covardia ou por culpa?), esboço um pedido de perdão, mas a mão viscosa de sangue e poeira me corta:

– Vamos, agora! Já!

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

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