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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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É preciso encontrar alguém diante de quem se possa ajoelhar

Monumentos em homenagem aos mortos durante a 2ª Guerra Mundial se sucedem vertiginosamente por Moscou

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h25 - Publicado em 22 jun 2018, 06h35

Enquanto caminho pela longa Avenida Gagárin, deparo com um monumento em homenagem aos militares mortos durante as guerras no Afeganistão, ainda sob a égide da União Soviética (1979-89), e na Tchetchênia (1994-96/1999-2000), já depois do colapso da URSS: um obelisco em cujo topo um anjo alado carrega (e sacraliza) o corpo de um soldado ceifado em combate.

Anjo alado segurando – e sacralizando – o corpo do soldado ceifado pela guerra, em Níjni Novgorod (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

Ao lado do obelisco, um grande painel de mármore enegrecido lista, em ordem alfabética, os nomes – ou melhor, os sobrenomes seguidos das iniciais dos nomes – dos militares que deixaram de existir.

Monumentos em homenagem aos mortos durante a Segunda Guerra Mundial – 20 milhões de soviéticos tombaram durante o conflito – se sucedem vertiginosamente: um na Avenida Gagárin, outro após as muralhas do Kremlin de Níjni Novgorod, ao centro do qual arde uma chama vigorosa e inexaurível como que a dizer: “Não nos esqueceremos de vocês”. Na sequência, novos painéis de mármore enegrecido com os (sobre)nomes dos militares que morreram pela pátria.

Noto que, raramente, as pessoas que por ali transitam se aproximam dos painéis de mármore. Vistas de longe, as listas que individualizam os mortos mais parecem uma viscosa e indiscernível sopa de letras de que a Mãe Rússia se alimenta – chego a sentir náusea ao pensar que o nacionalismo belicista dos russos drena, incestuosamente, seus filhos de volta para o útero da terra que os pariu.

Ao fim e ao cabo, a Avenida Gagárin desemboca na Praça Máximo Górki, em homenagem ao escritor de origem sumamente humilde nascido em Níjni Novgorod, em 1868. Logo me lembro do título tão singelo quanto concreto do segundo tomo da trilogia autobiográfica de Górki: Ganhando meu pão. O nomadismo da pobreza fizera de Górki vendedor de pássaros e caixeiro viajante; pintor de ícones e padeiro; ferroviário – e jornalista. Enquanto observo a estátua altiva do escritor, fico pensando em como a forja da sensibilidade literária de Górki ia extraindo lirismo de seu périplo pelos vários biscates: o chilreio e as cores dos pássaros; as histórias e estórias dos compradores pelas várias cidades; o detalhismo das gravuras religiosas; o calor do forno da padaria (verdadeiro bunker contra o inverno russo) e os nacos de pão surrupiados; o vapor malemolente das locomotivas e a cadência dos vagões pelas bitolas; as vivências sendo impressas (ganhando corpo, Ganhando meu pão) nas páginas dos jornais.

Estátua do escritor Máximo Górki, em Níjni Novgorod (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

Súbito, alguém toca em meu braço.

– Me desculpe incomodar, mas você não quer que eu tire uma foto sua ao lado da estátua do Górki? É que eu te vi todo compenetrado a olhar para o escritor…

Logo fico sabendo que a simpática Ekatierina (chamemo-la assim) é uma testemunha de Jeová (isto é, uma dissidente) na Rússia cada vez mais ortodoxa sob o punho de Vladimir Putin.

Kátia me relata que já sofreu constrangimentos policiais por causa de suas tentativas de evangelização pelas ruas de Níjni Novgorod. “É por isso que estou me mudando para a Ucrânia. Em Kiev, não há nada disso, lá eu posso ser quem eu sou. Por lá, a situação econômica é bem mais difícil, mas não há na Ucrânia um movimento de unificação religiosa como está acontecendo na Rússia. Ser ortodoxo – ter uma única religião –, na cabeça de quem comanda, parece contribuir para a unidade do país. É como se, com nossas reuniões semanais para debate dos textos bíblicos, como testemunhas de Jeová, nós fôssemos agentes centrífugas, verdadeiros espiões antinacionais. É preciso estar na igreja, é preciso ser ortodoxo. Se eu não faço parte da maioria, se eu não adenso a massa de fiéis alinhados com o pendor religioso de um Estado cada vez menos laico, eu não sou bem-vinda. A massa ou o exílio – já não parece haver meio-termo. Eles escutam nossas conversas pelo celular, eles nos espreitam como se não fôssemos russos – ser russo, para eles, implica ser ortodoxo; ser russo, para eles, implica não trazer quaisquer “divisões” à sociedade. Se não estamos assistindo à formação de um consenso profundamente autoritário, eu já não sei dizer o que está acontecendo. Por favor, escreva sobre isso, mas não divulgue meu verdadeiro nome – apenas diga para as pessoas que a Rússia não se livrou do fanatismo. Não! Nós escapamos da propaganda comunista e caímos no colo da liturgia do nacionalismo e da ortodoxia. O povo parece não querer pensar por si próprio – o vácuo de ideias impostas pela cúpula do poder é perigoso: ele pode fazer lembrar que nós temos que pensar por nós mesmos. Isso é democrático – e a democracia é perigosa! A democracia é centrífuga, ela traz dissensões, e isso é perigoso, porque, segundo eles (os de cima), nós precisamos de alinhamento, nós precisamos de unidade. Vocês já não tiveram democracia após o colapso da União Soviética? – perguntam os de cima. E o que aconteceu? Perdas territoriais, o país à beira da guerra civil. Agora, prosseguem os de cima, vocês precisam de um líder (um guia, um pai, um tsar); agora vocês precisam da religião (uma única religião, uma doutrina, uma identidade), pois só assim a Rússia será una e forte novamente. E eu estou cansada de tudo isso – cansada e com medo. Por isso, estou indo embora, preciso abandonar o meu próprio país que já não sabe (e já não quer) me acolher”.

Fico pensando nas palavras de Kátia e me vem à mente, ainda uma vez, a náusea dos monumentos em homenagem aos militares mortos em defesa da pátria. Os soldados se vão; seus nomes, supostamente individualizados, se embaralham nas listas (nas lápides) de mármore negro, mas a pátria, a Mãe Rússia (o útero e o sepulcro, o princípio e o fim), a pátria permanece, a pátria se unifica, a pátria convoca à ortodoxia para, em nome da unidade nacional, arregimentar fiéis para as igrejas e soldados para os batalhões e guerras vindouros, conflitos que gerarão mais monumentos em homenagem aos militares mortos em defesa da pátria; pátria que, com as mortes heroicas, se une e se engrandece – conhecemos algum afeto mais sólido do que o ímpeto de vingança e a saudade dos entes queridos? E, para o nacionalismo e para a ortodoxia – a bem dizer, para o nacionalismo ortodoxo –, ser testemunha de Jeová ou católico, protestante, muçulmano ou ateu aponta para o caráter centrífugo do indivíduo que destoa da massa, o indivíduo que não se quer arrolado pela lista, o indivíduo que não se vê membro da família, da religião ou do Estado – o indivíduo que tenta dizer eu, eis o inimigo. É por isso que, para a ortodoxia de Estado, para a ortodoxia nacional, uma mulher não se chama Ekatierina ou Ksênia; uma mulher, antes de mais nada, deve pertencer à família e parir; parir um fiel para a Igreja (crescei e multiplicai-vos); parir um soldado para o Estado (eis a multiplicação dos pães e dos peixes). Ajoelhar-se diante do clérigo ortodoxo (amém); ajoelhar-se diante do oficial militar (sim, senhor).

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“Para o homem livre, não há desespero maior do que encontrar alguém diante de quem ele possa se ajoelhar”. Com essa frase, o grande inquisidor de Dostoiévski, personagem composta pelo intelectual Ivan Karamázov em Os irmãos Karamázov (1880), pensava exprimir uma tendência (o discurso da servidão voluntária) comum aos mais diversos povos – a bem dizer, ao “homem” em qualquer tempo e em qualquer lugar. Quem me ajudou a entrever, com mais acuidade, o caráter eminentemente russo da colocação do grande inquisidor foi a estudiosa da obra de Dostoiévski Galina Boríssovna Ponomariova (1935 – ), que foi diretora do Museu-Casa Dostoiévski, em Moscou, de 1983 a 2017. Para Ponomariova, que vê em Vladimir Putin um líder forte e carismático, os russos rechaçam a democracia pelo fato de as instituições republicanas – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário; a vontade soberana do povo por meio do voto – serem entes de poder meramente abstratos; “os russos”, prossegue Ponomariova, “querem ver o corpo e a concretude do soberano, os russos querem ouvir sua voz e ver as inflexões de seu rosto – os russos, em suma, querem tocar a aura daquele que os governa”.

O neotsar Vladimir Vladímirovitch Putin (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

Em Mein Kampf (Minha luta, 1925), Adolf Hitler sentenciou que, ao falar com as massas, pelas massas e para as massas, o orador não deveria lançar mão de argumentos lógicos e concatenados, mas, sim, apelar para o sentimentalismo e a emotividade, com argumentos vagos e repletos de arroubos de retórica, como se estivesse flertando com uma “mulher” – para a misoginia autoritária de Hitler, as massas eram tão suscetíveis e volúveis quanto uma “mulher”.

Não à toa, o judoca Vladimir Putin já foi veiculado pela mídia, inúmeras vezes, com o torso nu e a reboque de atividades tidas como viris, tais como caçadas e cavalgadas. Salvo engano, a última aparição seminua de Putin – aparição devidamente veiculada pela TV estatal – se deu no dia 19 de janeiro deste ano, quando o presidente mergulhou nas águas gélidas do lago Seliger, a aproximadamente 400 km ao norte de Moscou, para celebrar a Epifania ortodoxa, festividade que relembra o batismo de Jesus Cristo nas águas do rio Jordão. No momento da aparição viril e epifânica de Putin, os termômetros marcavam -5ºC.
É assim que, para arrematar o pathos político da alma russa, Galina Boríssovna Ponomariova sentencia que “os russos, a bem dizer, querem não a democracia, mas o retorno da monarquia. Os russos ainda não estão prontos para tanto, mas é o que eles querem”.

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br. 

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