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Por Flávio Ricardo Vassoler
Um olhar para o cotidiano histórico e cultural da Rússia - mas muito além do futebol
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Almas mortas (saudade)

A ourivesaria do detalhe, em Gógol, tenta estancar o fluxo irredimível do tempo com o mosaico (e o afago) da memória

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualizado em 30 jul 2020, 20h24 - Publicado em 28 jun 2018, 07h22

Com pouco mais de 300 mil habitantes, Saransk é uma pequena cidade – não tão pequena quanto a Quintana de meus ancestrais, no interior de São Paulo, com seus 5 mil habitantes (se tanto) –, cujo centro consigo perfazer a pé.

Entre a catedral azulada e de bulbos dourados e o hotelzinho onde estou hospedado, vejo alguns casebres à beira do rio com um estilo que só se encontra na Rússia – e, devo dizer, na Rússia profunda.

Imagine um tronco cortado ao meio, só que longitudinalmente.

Imagine, agora, uma sucessão justaposta de tais metades de troncos, uma sobre a outra, como se baguetes abertas estivessem sendo perfiladas. Eis a fachada dos casebres menos altos do que compridos.

1. Fachada de um casebre da Rússia profunda, em Saransk – Foto de Flávio Ricardo Vassoler. (Flávio Ricardo Vassoler/VEJA)

Aqui em Saransk, a superfície dos troncos foi polida, o que lhes confere uma impressão menos rústica. Em meados do ano passado, quando estive na longínqua Sibéria – em Ulan-Ude, digamos, capital da República da Buriátia, ou, então, ao longo da linha férrea do Grande Expresso Transiberiano, nas imediações do lago Baikal –, vi casebres cujos troncos cascudos e cheios de farpas pareciam recém-extraídos da taiga, ainda que se tratasse de moradias imemoriais.

Ouço o sino da catedral (ou imagino ouvi-lo) e me vem à memória uma passagem do romance Almas mortas (1842), do russo Nikolai Gógol (1809-1852), em meio à qual a experiência do viajante nômade (fiel como os pássaros migratórios) se funde à tentativa de compilar os retalhos bucólicos (da toalha de mesa costurada pela avó?) de uma Rússia profunda em direção a cujo passado a visão dos casebres me levou.

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Eis o que a nostalgia gogoliana nos narra: “Assim que a cidade ficou para trás, logo se desenharam, de ambos os lados da estrada, as bagatelas a que estamos [a que estávamos, Gógol…] acostumados: morrinhos, bosques de abetos, arbustos baixotes de pinheiros jovens e raquíticos, troncos queimados de pinheiros velhos, matagal bravo e outros disparates semelhantes. Apareceram vilarejos que se estendiam como cadarços, construídos como se fossem antigos montes de lenha, cobertos por telhados cinzentos, abaixo dos quais havia ornatos de madeira entalhados nos beirais, que acabavam parecendo toalhas bordadas pendentes. Alguns mujiques, como de hábito, bocejavam, sentados em bancos diante dos portões, em seus casacos de pele de carneiro. Camponesas, de cara gorda e peitos enfaixados, olhavam pelas janelas do primeiro andar; nas janelas da parte de baixo, um bezerro espiava ou um porco punha para fora seu focinho cego”.

À diferença de um Fiódor Dostoiévski (1821-1881), cujas obras são vistas pela fortuna crítica como um paisagismo dos estados convulsos e escatológicos da alma, Nikolai Gógol verte suas almas mortas para o caráter vivaz e telúrico da Rússia profunda, trazendo à tona um mosaico folclórico de que os leitores citadinos à época do capitalismo nascente (primeira metade do século XIX) começavam a se apartar. Um espectro de nostalgia bucólica ronda o romance de Gógol, bucolismo que a Rússia tende a comunicar ao Brasil, já que, guardadas as diferenças, ambos os países periféricos passaram por processos de modernização, êxodo rural e urbanização tardios em comparação com as nações centrais do capitalismo. É assim que Nikolai Gógol e suas Almas mortas parecem ter dado à luz toda a nostalgia do chilreio dos pássaros, do galo da aurora e dos pés descalços sobre o orvalho matutino; do moedor de café acoplado à mesa de madeira rústica e da saudação com o chapéu de palha ao camponês que volta da lavoura (“Taaarrrde!”); do coador de pano para o café (muitas vezes, uma meia velha) e das cinzas ainda fumegantes do fogão à lenha; do doce de abóbora com cravo da bisavó e dos acordes dos grilos quando o escuro começa a despencar; do bule de café chiando e do leite quente cheio de nata na caneca de alumínio retorcido do bisavô; da bênção e do beijo de boa noite da avó antes que o sono venha sobre o travesseiro de pena de ganso (ou seria de galinha?).

A nostalgia bucólica de Almas mortas alcança o estatuto de uma ontologia do tempo perdido. A ourivesaria do detalhe, em Gógol, tenta estancar o fluxo irredimível do tempo com o mosaico (e o afago) da memória, o canto fúnebre de uma Rússia que, enquanto agoniza, ainda entoa a paisagem (e a aragem) de seu passado.

Agora pela manhã, aqui em Saransk, volto a ouvir as badaladas do sino da catedral (ou imagino ouvi-las).

Tomado, subitamente, pela noção (dostoievskiana) de que a beleza salvará o mundo, me ocorre que a pergunta “Por quem os sinos dobram?” só pode ser feita por alguém que se vê cindido da experiência mesma de despertar, singelamente, com a aurora dos sinos.

A impossibilidade de transmitir em sua totalidade a aura dessa experiência me levou, sem mais, à epifania que o alemão Martin Heidegger (1889-1976) chamou de “acontecimento” – a meu ver, um dos mais belos acordes poéticos da filosofia.

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Tudo aquilo que acontece como epifania; tudo aquilo que irrompe com a beleza dos olhos marejados; tudo aquilo que cicatriza com o ímpeto da reconciliação; todo encontro que se consuma com a esperança da comunhão – acontecimentos assim (res)guardam sua aura na vivência mesma, de modo que qualquer relato (qualquer soslaio narrativo) que tente se acercar do momento necessariamente o faz sem carregar consigo o eriçamento ontológico que o badalar dos sinos provoca em quem o ouve aqui e agora.

Em uma época que relega Deus ao exílio – refiro-me à busca verdadeira e profunda por sentido e transcendência, e não aos vendilhões do templo à frente de seus megaempreendimentos religiosos –, a noção heideggeriana de “acontecimento” irrompe com a essência de tudo aquilo que é místico, indômito e radicalmente subjetivo.

Por quem os sinos dobram, então? Por aquele que sente o afago de suas badaladas. [Me ocorre, aqui e agora, que o Príncipe Míchkin, herói do romance O idiota (1869) e fusão dostoievskiana de Jesus Cristo e Dom Quixote, só pode ter sentenciado que a beleza salvará o mundo em meio à aurora do verão russo que vai banhando os bulbos sinuosos das catedrais ortodoxas com luz e sentido.]

Sobre o autor

Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis. Página na internet: Portal Heráclito, https://www.portalheraclito.com.br.

 

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