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Valentina de Botas: Picar cebola, refinar-se.

A extrema esquerda enlouqueceu com a loucura da extrema direita e ambas se esfregam no escurinho da intolerância que só tem um lado: o da intolerância

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h41 - Publicado em 14 nov 2017, 15h32

Minhas raras noites insones são despertadas por ver nelas os olhos da menina que fui. Eles lembram à mulher madura que me tornei a simplicidade da inquietude que impregna o mundo do encanto possível. Enquanto houver inquietude, há esperança. Não sei, mas tenho a sensação de que a tradução madura da inquietude salta de “por que…?” – pergunta mais ligada à infantilidade mental ou espiritual – para “o que…?”, que parece investigar menos causas e razões tão sujeitas a circunstâncias (por definição, impermanentes) para tentar uma aproximação com a essência das coisas e das pessoas, tocar nela e por ela sermos tocados. Como fazer isso? Não sei. Mas aqueles olhos me fazem continuar tateando esse não saber que, não raro, é a nossa melhor parte.

Posso dar exemplos de usos para a tal pergunta madura “o que…?”: o que está pensando o sujeito que me xinga e me ameaça na redessociolândia? Meus textos alcançam, se muito, uma ou duas centenas de pessoas. O que é um mundaréu de gente para quem jamais pretendeu falar a multidões e acha ridícula a carreira de subcelebridade da internet. Eles só trazem a opinião de uma mulher anônima, confortável com a própria desimportância e com a liberdade frugal, conquanto essencial e inalienável, de expressar o que pensa. Quando pensa. Sim, pois tem hora que só quero não pensar; e outra em que penso e me calo. Então, o sujeito sai da casinha para chamar de “vaca” uma mulher desconhecida e cuja opinião não tem a pretensão nem o poder de mudar a opinião, o dia ou a vida dele. O sujeito vem torcer para que eu “morra devagar” depois de ver minha filha “morrer devagar”. É da fricção de ideias que resulta a fagulha que ilumina o território além delas. Mas essas reações são só patologia e, como não estou à disposição de patologias alheias – as minhas já me dão muito trabalho –, higienizo o recinto sem responder e bloqueio a figura.

O mesmo se aplica a certos “seguidores” que fruem gozo patológico semelhante aos que discordam da opinião publicada: o que está pensando a criatura que ilustra com uma fotomontagem de Lula num caixão um comentário a um texto em que explico por que o considero o pior fenômeno da história da nossa política? O que está pensando outro seguidor que despeja palavrões em torno da foto de Rodrigo Janot decorada com rabo e chifre num post em que digo como a atuação do arqueiro-parcial da república prejudicou a Lava Jato, sabotou o país e ignorou as leis a pretexto de a cumprir tentando depor Temer ilegalmente? Apago tudo porque não quero para os outros o que não quero para mim, porque lixo não é argumento, porque é feio, estéril, bruto.

Sobretudo porque busco me refinar como gente quando estou na minha cozinha picando a cebola que refogarei para temperar o feijão, ou sentada na minha varanda minúscula fazendo à mão a barra da calça do uniforme escolar da minha filha, ou ajudando minha querida mãe a organizar os trocentos álbuns de fotografias dela e ouvir de corpo inteiro, pela trocentésima vez, as histórias sobre a multidão de parentes, a maioria já morta; tanto como quando me empenho no meu trabalho de revisão de texto ou de tradução que me exigem um repertório mental e lexical remunerado a 1/3 do que vale; ou ainda quando recuo mesmo hesitante diante de vulnerabilidades alheias cuja exploração me traria vantagem. É que assim também se forja um caráter que, anseio, seja refinado.

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Não estou dizendo que o alvo dessas patologias deveria ser apenas gente famosa ou relevante. Mas é ser muito mega-super-hiper zé-mané atacar uma zé-mané. Tá bom, admito minha esperança leviana: acho que ninguém deveria ser alvo dessas patologias. O que estou pensando com essa leviandade? Que a desmedida expulsou o refinamento de pensamentos e ações, impondo a histeria às reações tanto frente a meras opiniões como a ações que exigem uma resposta firme, sim, mas tão somente na medida da ação.

Querem ver? Kevin Spacey é um canalha, certo? Certo. Lamento que um grande ator, cujo talento provavelmente ainda se expandiria, termine a carreira de modo tão miserável. Culpa dele, claro. Mas Ridley Scott (que adoro) precisava mesmo apagar o ator de um filme já pronto? Christopher Plummer (por quem sou apaixonada e está magnífico no sensacional “Memórias Secretas”) será enxertado artificialmente numa presença que deformará o filme. Afinal, os atores que contracenaram com Spacey reagiram a um gestual, um olhar, uma dicção, uma presença, em resumo, que não era a de Plummer. Ademais, essa decisão atrelou o filme a Spacey para sempre. Entre os brasileiros, a maioria dos comentários que ouvi a respeito concorda com a atitude de Scott e me divertiu até quase me enternecer a hipocrisia de muitas alminhas simples que, cultivadas no mundinho plano delas cujo eixo é o simplinho bem X mal, ficassem chocadas com o fato de Kevin Spacey ser gay e, mesmo assim (?!), ter cometido assédio. Resistem em admitir que abuso/assédio não é uma questão de sexo/gênero, mas de poder.

Há pessoas determinadas não apenas a não assistir ao filme “O Jardim das Aflições” (com/sobre Olavo de Carvalho) e outras tantas decididas a não apenas não ver a palestra da filósofa Judith Butler sobre ideologia de gênero, mas todas estão empenhadas em também impedir que umas assistam ao filme e que outras vejam a palestra. A extrema esquerda (muito mal-acostumada com a até outro dia tímida resistência à agenda cultura e intelectual imposta por mais de uma década) enlouqueceu com a loucura da extrema direita e ambas se esfregam no escurinho da intolerância que só tem um lado: o da intolerância. Ninguém é obrigado a assistir ou deixar de assistir a um filme, palestra etc. Mas todos somos obrigados a sair do caminho alheio. Você é contra? Proteste, é um direito teu, direito este que não anula o direito de quem quiser ver a coisa.

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Enquanto essas reações exageradas se naturalizam, a falta de ação perante o terrorismo do MST mascarado na Bahia e perante o terrorismo de cara limpa embalado por show de MPB em São Bernardo do Campo, onde a milícia de Guilherme Boulos invadiu uma propriedade, dá a medida das desmedidas no país. O Estadão noticiou, nesta segunda-feira, que o governo Temer (este que tem 4% de popularidade nos quais me incluo, reafirmo) regularizou mais terras do que Lula e Dilma, mas a notícia da legalização de propriedade não animará Caetano Veloso como uma invasão de propriedade.

Para terminar, uma palavra ainda sobre o caso William Waack. Não estamos mais a sós: o BBB fugiu do zoológico do Projac, vestiu armadura fundamentalista e está nas câmaras dos celulares e nos teclados da patrulha politicamente correta movida a ressentimento canalha e burrice turbinada pela tecnologia: o alegado objetivo de discutir o racismo por aqueles que divulgaram a conversa privada pôde esperar um ano até que eles fossem demitidos. Depois de quase uma semana, tudo o que conseguiram foi empobrecer ainda mais o debate público com a ausência de Waack e manter o racismo tão denso quanto antes.

Quem condenou o jornalista, que racista não é, afirma que a piada indigna, justamente porque dita em privado, “desmascarou o racista-de-direita” porque é na vida privada que as pessoas se mostram como são. Mesmo? Ora, uma só frase não basta definir alguém na privacidade, é necessário conhecer mais falas de Waack na chuva, na rua, na fazenda e na casa dele. Os caçadores de consciência nem imaginam que agora mesmo, entre quatro paredes, o caráter refinado de um homem, cuja longa atuação pública e o relato de quem o conhece na intimidade o inocentam da acusação fraudulenta, está fazendo piada da mediocridade da patrulha ressentida desmascarada, ela sim, ao se mostrar na sua suja inteireza e revelar seus cúmplices. 

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