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Por Coluna
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Sons de uma vida

As guitarras elétricas estão em toda parte, em paz, como sempre deveria ter sido

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 19h34 - Publicado em 14 jul 2019, 16h49

Heraldo Palmeira

Nos meus primeiros anos de vida me apaixonei perdidamente pelo rádio. Afinal, televisão no interior do Nordeste daqueles tempos era algo parecido com pé de cobra: a gente sabe que existe, porque a bicha anda, mas nunca se viu um único deles diante do olho.

Desde que me entendo por gente há um rádio por perto. E do rádio veio outra paixão absoluta: a música. Dessa segunda paixão, a guitarra me saltou fascinante aos olhos.

Como cresci nos anos 60 e 70, obviamente as guitarras elétricas eram ícones poderosos para qualquer rapazote daqueles tempos. Em qualquer banda, os guitarristas eram os músicos mais dotados de argumentos cênicos, talvez pela própria vocação solista das guitarras. Como as meninas enlouqueciam por eles, todos nós queríamos ser guitarristas, mesmo sem qualquer talento para uma missão estelar de tal porte.

Claro que havia Beatles, Stones e suas lendárias Epiphone, Gretsch e Rickenbacker, que viraram símbolos fortes do pop britânico dos anos 60. Mas o reino das seis cordas de aço tinha outras concorrentes poderosas e também espetaculares: Fender Stratocaster, Fender Telecaster e Gibson Les Paul.

Muitos estudiosos afirmam que as guitarras elétricas contribuíram de maneira fundamental para a globalização dos valores culturais ocidentais e para derreter a Cortina de Ferro que sufocava intramuros o mundo comunista, a partir da conquista dos jovens do Leste Europeu ansiosos por respirar ares mais puros.

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A Les Paul, primeira guitarra de corpo maciço, foi criada a partir de experiências iniciadas em 1941 pelo americano do Wisconsin, Lester William Polsfuss, nas oficinas do visionário Epaminondas Stathopoulo, que herdou do pai grego Anastasios uma empresa familiar fabricante original de alaúdes, banjos e bandolins, de onde nasceria a Epiphone Company, depois subsidiária da Gibson Guitar Corporation.

Polsfuss, que começou a tocar gaita aos oito anos, tornou-se músico profissional aos treze e ficou mundialmente famoso como Les Paul, um guitarrista de altíssimo nível técnico que extrapolou os limites do ofício de instrumentista ao contribuir para a arte e a ciência da música, e para o desenvolvimento do seu mercado produtor.

Corria 1948 e Les Paul iniciou uma experiência na própria garagem, que terminou encampada pela gigante Capitol Records. Utilizando discos de acetato, o guitarrista gravou uma trilha em um desses discos. A seguir, fez rodar o primeiro disco e gravou ao mesmo tempo uma nova parte da música num segundo disco, mantendo a parte anterior somada à nova e assim sucessivamente.

Nessa primeira experiência, Paul descartou cerca de 500 discos de acetato com os resultados que não aprovouMais adiante, ele avançou tecnicamente dessa sobreposição de sons para as gravações com trilhas em canais paralelos, mantida até hoje em qualquer tecnologia de gravação musical. 

Contemporâneo histórico de Polsfuss, o californiano Clarence Leonidas Fender botou no mundo a guitarra Fender Stratocaster, outro monstro sagrado da música, em sua fábrica instalada a partir de 1946. Como se isso fosse pouco, ainda criou os lendários baixos elétricos Fender Precision Bass e Fender Jazz Bass.

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Com eles os contrabaixistas ficaram livres dos incômodos daqueles enormes e frágeis contrabaixos acústicos e passaram a tocar como se fossem guitarristas, com muito mais conforto e facilidade de transporte. Assim, a Fender se enraizou de forma definitiva nos domínios do jazz e da música popular mundial.

Les Paul morreu aos 94 anos, em Nova York, como um grande revolucionário. Não bastasse ter criado uma guitarra que muitos consideram a mais fabulosa de todas, mudou o princípio das gravações musicais em estúdio e inaugurou a era — que perdura até hoje — de se multiplicar sem limites execuções instrumentais e vocais, para produzir uma mesma música.

Mereceu da fábrica Gibson, com plena justiça, a homenagem em forma da guitarra modelo Les Paul, disponibilizada em diversas versões e hoje o instrumento musical mais popular da marca. Uma concorrente definitiva para outra lenda, a Fender Stratocaster criada pelo também mestre Leo Fender, com quem duela ao longo de décadas pelas mãos dos melhores guitarristas da história da música.

Fender vendeu sua indústria para a CBS em 1965 por US$ 13 milhões, recolheu-se para tratar da saúde fragilizada pelo excesso de trabalho, voltou à ativa anos depois criando outra fábrica, a Music Man, até hoje ativa, e desenhando instrumentos na G&L. Faleceu aos 81 anos, em Fullerton, em plena atividade.

Alheio a todas essas sagas extraordinárias que geraram história, arte, cultura e negócios perenes, na noite de 17 de julho de 1967 o Brasil deu aquele costumeiro passo em falso entre fazer piada e virar piada, quando artistas importantes foram às ruas puxar a inacreditável Marcha Contra a Guitarra Elétrica.

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Na verdade, a música brasileira tradicional estava muito bem instalada e a rapaziada inquieta, agrupada num certo iê-iê-iê que invadia o mundo a partir de uns tais de Beatles, buscava abrir espaço por aqui, no rastro dos sopros ainda tíbios deixados no ar pela turma de Celly Campelo, que saiu de cena para se casar. Ah, estúpido cupido!

Os meninos que propunham suas festas de arromba e se apresentavam como antítese da velha guarda e do samba, na verdade ainda juntavam bolero e samba-canção com pitadas de rock and roll — a música Devolva-me, sucesso de Leno e Lilian, é um exemplo claro (e fácil de compreender) do abrasileiramento ainda tímido da novidade anglo-americana.

A luta parecia inglória porque em outra praia quebrava uma onda robusta, que ganhava o exterior com honras, uma tal de bossa nova, germinada em apartamentos bacanas de uma elite musical que vivia na Zona Sul carioca. Uma novidade montada em cima de canto suave e uma batida diferente que desnorteava completamente os conceitos musicais vigentes. E que tinha num João baiano e num Antônio carioca seus grandes motores.

Mas a molecada não deu trégua e começou a fazer barulho com suas guitarras, suas cabeleiras desgrenhadas, seu desalinho indispensável para quebrar a caretice reinante, suas liberalidades de costumes…

A oportunidade havia surgido em 1965, quando os cartolas do futebol proibiram a Record de transmitir seus jogos de domingo, alegando que os estádios estavam esvaziando. Com o buraco na programação, a emissora resolveu introduzir uma atração alegre, com música simples e muita gente jovem e desconhecida em começo de carreira. O sucesso foi imediato, lotando o Teatro Record de adolescentes.

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Com o sucesso incontrolável começando a mexer nas posições musicais do mercado, algum gênio concebeu a tal passeata contra as guitarras. Gritando o slogan “Defender o que é nosso”, gente como Elis Regina, Edu Lobo, MPB4, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Zé Kéti… saiu do Largo de São Francisco até a porta do Teatro Paramount, na Brigadeiro Luís Antônio, região central de São Paulo.

Bem mais esperto, Caetano Veloso preferiu ficar entrincheirado na janela do hotel Danúbio e ver tudo lá de cima na companhia de Nara Leão. Ela, outra gigante,foi direta falando ao baiano: “Isso aí é um horror! Parece manifestação do Partido Integralista. É fascismo mesmo!”.

Hoje, já se sabe que aquela idiotice pode ter sido apenas uma grande jogada de marketing engendrada nos bastidores da TV Record (a original, da família Carvalho), que tinha dois programas de estrondoso sucesso: Jovem Guarda (Roberto, Erasmo e Wanderléa) e O Fino da Bossa (Elis e Jair).

Naquele momento travava-se o duelo entre a música jovem de influência estrangeira e a música brasileira mais tradicional e já influenciada pela bossa nova, com visível desvantagem para o time de Elis, e a emissora arriscou a passeata para tentar equilibrar a balança da audiência.

Três meses depois, exatamente Caetano Veloso com Alegria, alegria e Gilberto Gil com Domingo no parque, cercados de guitarras distorcidas no III Festival da Record, comprovaram que havia uma música jovem e brasileira de altíssimo nível, onde até Roberto Carlos foi premiado cantando samba, Maria, Carnaval e cinzas. O resto é folk lore!

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Muitos anos depois, certamente acossado pela péssima repercussão histórica da passeata — uma verdadeira ideia de jerico liderada por Elis e Edu —, Gilberto Gil, no seu costumeiro modo escorregadio, tentou transferir a própria culpa pelo papelão afirmando que só participou daquela patacoada atraído pela Pimentinha, por quem se dizia apaixonado.

Em entrevista ao jornalista Júlio Maria, publicada no Estadão de 28 de janeiro de 2012, saiu-se com essa pérola do nonsense, naquele tradicional baianês castiço que não diz coisa com coisa, antes pelo contrário: “…Eu participava com ela daquela coisa cívica, em defesa da brasilidade, tinha aquela mítica da guitarra, como invasora, e eu não tinha isso com a guitarra, mas tinha com outras questões, da militância, era o momento em que nós todos queríamos atuar. E aquela passeata era um pouco a manifestação desse afã na Elis […] no meu caso, eu saí desse jogo. Não quis fazer esse jogo, se eu fosse colocar como termo da equação essas questões e tirar a Elis da equação eu não teria ido. Mas eu fiz o contrário, eliminei todos os outros termos da equação e deixei ali só a Elis. Determinei meu ato, pautei meu ato por aquela questão. A questão era ela. Eu nada tinha contra a guitarra elétrica”.

Até hoje muita gente se pergunta por que Elis, sempre tão antenada, tão direta, tão positiva entrou numa barca furada daquela, ainda mais, colada a um cara que,extraordinário na criação musical, sempre foi histriônicono resto das questões. A declaração desairosa destinada a uma pessoa morta trinta anos antes da entrevista, incapaz de responder à altura, resta como nota desafinada de rodapé.

A partir daí, o tempo, senhor de tudo, passou ladino para revelar Caetano, Gil e todos os outros artistas — excluídos apenas Zé Keti e Vandré — abduzidos por inteiro pelas seis cordas eletrificadas. Elis teve no guitarrista Natan Marques uma das maravilhas da sua banda e do seu melhor som. Gil virou sinônimo do pop, que tem na Fender Telecaster um de seus instrumentos preferidos no palco. E as guitarras elétricas estão em toda parte, em paz, como sempre deveria ter sido.

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