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Sons da janela

A sinfonia urbana toca forte todos os dias e se renova eliminando velhos sons, inserindo outros novos, e então o silêncio revela que o som faz falta

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h29 - Publicado em 22 abr 2018, 19h12

Heraldo Palmeira

A sinfonia urbana invade nossas vidas sem licença, sem parcimônia. Alguns sons diretos; outros carecendo de tradução para que se entenda a cidade que nos rodeia a partir dos seus sonidos.

Estou convencido de que certas coisas só existem para cultuar o sadismo. Ou há alguma explicação razoável para que britadeiras, furadeiras e serras elétricas comecem a destruir o mundo britanicamente no primeiro segundo do horário permitido?

Demoram apenas o suficiente para nos expulsar do que resta de sossego na vida moderna e calam como que por milagre! Quem prestar atenção verá que raramente funcionam no período da tarde.

Cedo desmancham nossas camas, esculhambam qualquer oração matinal, desandam qualquer conversa familiar ao redor do café — dos poucos privilegiados que ainda tomam o desjejum em casa e em família…

Na cena comovente de todas as tardes, o rapaz percorre a área comum do condomínio ajudado por outro. É um caminhar longo para ele. Sofrido. Emite o mesmo som, “Uuufff!”, a cada passo custosamente dado. Sou testemunha ocular daquela luta diária pelo dia seguinte, amparada numa relação de afeto e dedicação do cuidador cuidando pacientemente do seu paciente.

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De vez em quando, o mesmo cachorrinho reclama por latidos aflitos da solidão em que foi deixado pelos seus donos. Soa, naquela angústia do bichinho, o retrato dessa covardia de criar animais de forma e em locais inadequados. Coisa de humanos que desenham um afeto oblíquo, obrigando essas pobres criaturas a sofrer para cumprir a função de acalentar carências e falências emocionais de gente.

Preciso ser justo: o cachorrinho é um lorde, só late quando — imagino — está em seu próprio limite nervoso. E o faz de forma delicada, como se tentasse incomodar o mínimo possível. Apenas quer chamar atenção e deixar claro que cachorro detesta ficar sozinho.

Em dois ou três momentos do dia, gritos esganiçados e longos. Sempre três. E somem misteriosamente. O porteiro mais antigo garante que é um jovem com distúrbios mentais que mora na vizinhança. O zelador aposta que é um papagaio não sei de quem, num prédio mais adiante. Parece haver certa lenda, ninguém sabe quem realmente emite aqueles sons.

Há outro som que entra quase cerimonial pela minha janela. Uma sirene que toca pontualmente ao meio-dia. De domingo a domingo. Há quem afirme que está num prédio comercial da Paulista. Há quem garanta estar no prédio em frente, o da Gazeta.

Tenho inclinação pela segunda hipótese, pois há uma tradicional instituição de ensino funcionando naquele edifício clássico, um dos ícones da famosa avenida. Imagino, por minha conta e risco, que em tempos mais antigos tocasse em diversos horários de entrada e saída das aulas. Sobrou o toque único ao meio-dia, como que tentando manter vivo um tempo que já não existe.

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Esse toque também ganhou aspecto de lenda: todo mundo diz alguma coisa a respeito e ninguém sabe direito do que se trata. Continuamos apenas ouvindo o aviso diário de que o dia chegou ao meio. Como um sinal de comando para as pessoas lembrarem que é hora do almoço, de dar uma parada em favor de si mesmas.

Mais para o final da tarde, meninos e meninas quase sempre solitários chutam bolas contra a parede atrás de uma das traves da quadra de um condomínio. Sem qualquer preocupação de fazer gols, dar belos chutes sonhando estar num jogo de estádio lotado. Nada além de descarregar a agressividade e apurar a paciência da vizinhança.

Ao redor de tudo, sobre tudo, o rugido impaciente do trânsito transformado em território de feras — talvez antigos chutadores de bolas em paredes. Aceleradas, buzinas, xingamentos e imprudências dominando a cena. Como se esse elenco de impaciências pudesse pulverizar o carro ou qualquer outro obstáculo que está à frente, sossegar a ansiedade de avançar alguns centímetros no engarrafamento.

Volta e meia, a voz rouca das ruas, as multidões espalhadas pela mais paulista das avenidas para festejar ou protestar, lançam seu som inconfundível janela adentro. Chegam como convites ou alertas para o movimento de sair ou não de casa.

Ao fim de cada dia, o som mais calmo da noite prepara terreno para a balada que toca na madrugada. Sempre insone, sempre macia. Saindo de um disco escolhido ou do rádio. O único momento de afago que nunca falha, que acalma o ouvido, já que o som da chuva é incerto. Só vem quando bem entende. Para lavar a alma.

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A sinfonia urbana toca forte todos os dias e se renova eliminando velhos sons e inserindo outros novos. Embala o tempo compondo vidas, quase sempre sem que vidas e sonoridades se deem conta uns dos outros. Apenas são e soam. Sem controle, sem catalogação, sem importância aparente. Até que tudo se cale. E o silêncio revele que o som faz falta.

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