Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Augusto Nunes Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Coluna
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Sobral Pinto ensina ao defensor de Cachoeira que um advogado é o juiz inicial da causa. Não pode agir como comparsa

“Serei eu o juiz do meu cliente?”, pergunta Márcio Thomaz Bastos no título do artigo publicado na Folha desta quinta-feira. O cliente em questão é, segundo o doutor, “Carlos Augusto Ramos, chamado Cachoeira”, que contratou em março os serviços do ex-ministro da Justiça capaz de  enxergar inocentes até em serial killers americanos. “Não o conhecia, […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 08h37 - Publicado em 15 jun 2012, 01h05

“Serei eu o juiz do meu cliente?”, pergunta Márcio Thomaz Bastos no título do artigo publicado na Folha desta quinta-feira. O cliente em questão é, segundo o doutor, “Carlos Augusto Ramos, chamado Cachoeira”, que contratou em março os serviços do ex-ministro da Justiça capaz de  enxergar inocentes até em serial killers americanos. “Não o conhecia, embora tivesse ouvido falar dele”, informa no quinto parágrafo. Ouvira o suficiente para cobrar R$15 milhões pela missão de garantir que envelheça em liberdade.

Depois de consumir dezenas de linhas na descrição do calvário imposto a um cidadão sem culpas por policiais perversos, promotores desalmados e juízes sem coração, o doutor enfim se anima a responder à pergunta do título. “Serei eu então juiz de meu cliente?”, repete. “Por princípio, creio que não. Sou advogado constituído num processo criminal. Como tantos, procuro defender com lealdade e vigor quem confiou a mim tal responsabilidade”.

Conversa fiada, demonstrou o grande Heráclito Fontoura Sobral Pinto num trecho de numa carta escrita em outubro de 1944 (veja post na seção Vale Reprise): “O primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar. Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela é realmente defensável em face dos preceitos da justiça. Só depois de que eu me convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho à sua disposição”.

No artigo, Márcio Thomaz Bastos sustenta que todos os clientes e causas merecem o mesmo tratamento. Assim, vale tudo para absolver tanto um ladrocida compulsivo quanto de um sacristão engaiolado por ter bebido o vinho do padre. “Não há exagero na velha máxima: o acusado é sempre um oprimido”, afirma. “Ao zelar pela independência da defesa técnica, cumprimos não só um dever de consciência, mas princípios que garantem a dignidade do ser humano no processo. Assim nos mantemos fiéis aos valores que, ao longo da vida, professamos defender. Cremos ser a melhor maneira de servir ao povo brasileiro e à Constituição livre e democrática de nosso país”.

Quem colocou o gabinete de ministro da Justiça a serviço da quadrilha do mensalão não pode disfarçar-se de guardião do Estado de Direito. Quem procura enterrar em cova rasa as provas contra Cachoeira, colhidas pela Polícia Federal que chefiou, está convidado a dispensar-se de declarações de amor à democracia. Sem imaginar como seria o Brasil da segunda década do século seguinte, Sobral Pinto desmoralizou as falácias desfiadas por Márcio:

Continua após a publicidade

“A advocacia não se destina à defesa de quaisquer interesses. Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um advogado se sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma causa. O advogado não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa que se dispõe a comparecer à Justiça. O advogado é, necessariamente, uma consciência escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça, incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que não discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão”. 

Na Folha, o advogado de Cachoeira tortura a verdade: “Aconteceu o mais amplo e sistemático vazamento de escutas confidenciais”, fantasia. “A pródiga história brasileira dos abusos de poder jamais conheceu publicidade tão opressiva. Estranhamente, a violação de sigilo não causou indignação. Dia após dia, apareceram diálogos descontextualizados, compondo um quadro que lançou Carlos Augusto na fogueira do ódio generalizado. Trocou-se o valor constitucional da presunção de inocência pela intolerância do apedrejamento moral”.

Tradução da discurseira em juridiquês: a culpa é da imprensa, responsável pelo que o articulista define como “publicidade opressiva”. A expressão foi inaugurada na entrevista à Band em que o doutor acusou a imprensa de ter tomado partido no caso do mensalão. O bando liderado por José Dirceu nada fez de errado, explicou o entrevistado. Só será punida se os ministros do STF cederem à “publicidade opressiva” produzida por jornalistas que insistem em ver as coisas como as coisas são.

Na carta, o jurista admirável coloca em frangalhos, com quase 70 anos de antecedência, a tese forjada para justificar a parceria entre márcios e cachoeiras: “É indispensável que os clientes procurem o advogado de suas preferências como um homem de bem a quem se vai pedir conselho.  Orientada neste sentido, a advocacia é, nos países moralizados, um elemento de ordem e um dos mais eficientes instrumentos de realização do bem comum da sociedade”.

Continua após a publicidade

Desde 2005, quando o mensalão o induziu a excluir valores éticos dos critérios que determinam a aceitação de uma causa, o espetáculo tristonho se repete: sempre que Márcio Thomaz Bastos triunfa num tribunal, a Justiça é derrotada e a verdade morre outra vez. Gente com culpa no cartório escapa da cadeia, cresce a multidão de brasileiros convencidos de que aqui o crime compensa e ganha consistência a suspeita de que lutar pela aplicação rigorosa da lei é a luta mais vã.

É o que ocorrerá, por exemplo, se os argumentos invocados pelo ex-ministro forem acolhidos pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que designou três desembargadores para julgarem o pedido de habeas corpus impetrado em favor de Cachoeira. O relator Tourinho Neto já encampou as reivindicações de Márcio. Votou pela soltura do meliante, preso desde 29 de fevereiro, e considerou ilegal a escuta telefônica feita por agentes da Polícia Federal durante a Operação Monte Carlo. Falta apenas um voto para a consumação da ignomínia.

Todo acusado, insista-se, tem direito a um advogado de defesa. Mas doutor nenhum tem o direito de mentir para livrar de punições o acusado de crimes que comprovadamente cometeu. O advogado, resumiu Sobral Pinto,  é o juiz inicial da causa. Não pode agir como comparsa.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.