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Por Coluna
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O espelho

Até hoje, guarda o registro daqueles olhos amendoados refletindo a luz tênue do ambiente, olhando para dentro dele

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h36 - Publicado em 20 jan 2018, 11h19

Heraldo Palmeira

Ficou ali, paralisado, lendo o que um amigo que nunca viu lhe escrevera ─ têm por hábito trocar impressões escritas a respeito das coisas da vida. Aquilo abriu a porta de uma lembrança:

Porque, sim, nós sabemos que há amores eternos que só duram uma noite ou uma chuva, e que há os que são para valer, para serem construídos, para nos amanhecer todos os dias da vida. Quando chega o inverno e nós embranquecemos – e passamos a pensar na reta de chegada –, se soubéssemos rezar pediríamos para ser o primeiro a se despedir. Não por valentia ou generosidade, mas simplesmente porque é pior para o que fica.

Pensou naquela noite de outubro de quarenta anos atrás. Chovia, saíram sorrateiros, deixaram os amigos para trás. Bebiam tanto!… Quase certo que nem deram pela falta dos dois.

Ela estava linda na simplicidade de sempre. Enorme, quase do tamanho dele. De parar o trânsito! Cabelos soltos. Vestido comprido de alcinhas, em malha azul clarinho, riponga, última moda da época. Sandálias rasteirinhas, moda daquela e de todas as épocas.

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O ronco do Kadron era o som dos fuscas. Saíram do carro aos beijos, driblando os pingos da chuva. Ele abriu a porta devagar e pegou uma toalha. Secaram o excesso de água dos cabelos. Ela sentiu frio e o abraçou. Ele se sentiu anjo, porque anjo deve ser aquilo que sentiu naquele abraço.

A luz à meia-luz, penumbra dos seus medos joviais. O nervosismo daquela primeira vez tão esperada ─ era tudo tão forte, não podiam arriscar perder a sensação de céu nem mesmo quando os diabinhos, já inquietos, entrassem em cena como anjinhos que pecam.

Até hoje, guarda o registro daqueles olhos amendoados refletindo a luz tênue do ambiente, olhando para dentro dele. O aroma suave do perfume, as narinas gravadas para sempre pelo cheiro dela.

A respiração alterada, as bocas se aproximando, o vestido caindo como uma mágica, a cortina de um espetáculo, a escultura revelada… Todos os rituais cumpridos suavemente, sem pressa alguma, como prenunciando que aquela seria a primeira e a última noite. Chovia a cântaros, a melodia da chuva tocando uma ode à vida, ao fogo da paixão.

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Amanheceram abraçados, sem uma gota de sono dormido. Não houve tempo para nada além de andar nas nuvens. A chuva tinha-se ido, deixou o ar fresco na manhã de outono. Foi difícil ir embora, mas foram um do outro vida a fora.

Saíram devagar, sem se despedir, apenas indo por ir. Ou porque se deixaram ir sem que fosse preciso ter ido, sem medir consequências, sem entender que estavam indo para sempre. Sem imaginar que poderia doer tanto. Um preço das pressas da juventude.

Até um dia
Até talvez
Até quem sabe
Até você sem fantasia
Sem mais saudade

Sentiram saudade tantas vezes, mas nunca puderam refazer seus mapas e limites. Sentiram o pontapé que chega antes da bola e põe abaixo o jogador e a jogada que poderia ter sido. Tudo parou, como o canto do cisne. Como uma bicicleta abandonada que ninguém cuidou de pedalar.

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Ficou um mistério entre eles, algo parecido a um mesmo coração batendo em harmonia, embora já não houvesse aquela harmonia, embora houvesse uma coleção de rugas das expressões que perderam um do outro, dos risos que não deram juntos, das lágrimas que não enxugaram com carinho, dos filhos que não foram deles. Feridas vividas sem remédio, cicatrizes mal disfarçadas.

Ficou no ar o eterno recado que aparece numa lembrança, numa nuvem inesperada, numa chuva no sertão. No movimento do mar, no silêncio da noite. Numa rajada de vento, no balé da varanda da rede. Na vontade de ver, num abraço às escondidas, num beijo roubado. Nas músicas que eram deles e continuam tocando…

Te recolhe ao repouso
E deixa que eu pouse
Minhas mãos sobre ti
Dali e daqui
Vou juntar dores e danos
Cores e panos
Agulhas e linhas
E até uma florzinha
Pra bordar nossos panos
Adornar tantos anos
Passados a esmo ou a fio
Repulsas e cios
Começos e fins
Nossa geografia
Perde mapas e limites
Quando me permites
Beijar-te o ventre
Ir ao fim
Quando reabres tua vida
Para mim

E se pegou pensando onde esteve a curva que não viu e separou os destinos tão cedo. Foi tanto para uma noite apenas, tanta chuva! Foi tanto e durou tão pouco e virou eterno, como escreveu o amigo que nunca viu, que apenas lhe escreve coisas bonitas.

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Hoje, abre aquela velha porta e entra no seu tempo, mas está sozinho, conformado que quase haverá de ser assim. Já não correm os ares do cio, o aguaceiro virou tempo de estio. Tudo secou sem a água daquela chuvarada da noite eterna. Mas sopra a esperança da dança da chuva e de temporais inesperados.

Batidas na porta da frente
É o tempo
Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo
Recordo o amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos
E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver
Eu posso
E ele não vai poder
Me esquecer

Caminhou de mãos dadas com aquelas memórias pela margem do rio Reuss, sem qualquer compromisso. Parou para apreciar a Torre da Água e depois seguiu pela Ponte da Capela. Um grupo de músicos estava iniciando uma apresentação. Tocaram Beatles.

Andou um pouco mais e parou num café. Observou as pessoas passando em todas as direções, ao fundo a montanha coberta de neve. O frio trazia uma sensação estranha, era como se não estivesse sozinho. E nunca estava mesmo.

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Achava que algo podia ser feito, mas não sabia exatamente o quê. E nem por onde começar. Aprendeu a conviver com aquele amor incompleto sem deixar doer demais, sem deixar paralisar, a dor que nasce do amor eterno de uma noite só, da chuva a cântaros que segue inundando a vida inteira sem fertilizar.

Aquele amor podia ter sido para valer, aurora de todos os dias. O inverno está chegando e eles embranqueceram, entrando no tempo de pensar na reta de chegada.

Qualquer canção perdida
Vem me arrancar da vida
Pra recontar
O que aconteceu
Lembrança, estrela extinta
Que ainda brinca no céu

Ele sabe rezar e não pede nada, sequer entrou na igreja ali adiante. Não tem coragem de pedir para ser o primeiro a se despedir, porque é do tipo que nunca desacredita. E não é por valentia, quer apenas estar parado no tempo se ainda houver tempo. E se ficar sozinho vai morrer junto, pois já não estará vivendo. Afinal, ela nunca o deixou sozinho.

Trechos de:
Até quem sabe (João Donato)
Começos e fins (Cyro Telles-Heraldo Palmeira)
Resposta ao tempo (Cristóvão Bastos-Aldir Blanc)
Estrela extinta (Pratinha Saraiva-Jean Garfunkel)

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