Martinho da Vila resume o Brasil: “Devagar, devagarinho”
A canção expressa com graça a irritante retomada da economia brasileira. Ela vai tão devagar que até parece que não sai do lugar
Deonísio da Silva
No Rio, o destino me fez professor de Martinho da Vila, autor de versos memoráveis de nosso cancioneiro. Com ele sempre aprendi muito à distância, que é o modo como talvez ele agora aprenda algo comigo, uma vez que também estas aulas são ministradas à distância.
Que bela lição nessa amostra: “Devagar/ Devagarinho/ É que a gente chega lá/ Se você não acredita/ Você pode tropeçar”.
Martinho da Vila é uma daquelas glórias brasileiras de quem todos podem se orgulhar. É homem afável, gentil, tremendamente observador: nada parece escapar de seus afiados sentidos.
Outro dia assisti a um diálogo entre ele e o embaixador Jerônimo Moscardo em reunião numa mesa de bar, nas cercanias da Academia Brasileira de Letras, e me vi boquiaberto admirando a prosa entusiasta do diplomata e ex-ministro da Cultura no governo Itamar Franco, em claro contraste com a quietude reflexiva e atenta de Martinho da Vila.
O diplomata vituperava um autor americano cujo texto deixava bem claro um projeto de esculhambar a música brasileira genuína, substituindo-a por pontas de lança destruidoras do ritmo e da melodia nacionais.
O cantor fluminense de Duas Barras ouviu atentamente nosso amigo cearense, senhor de grandes poderes de persuasão, levou o texto para ler com calma em casa e dias depois, estribado em seu talento e experiência, um saber de experiências feito, concluiu que o samba já venceu no passado e voltará a vencer. Mas reconheceu real e perigosa a ameaça do americano.
Na mesma canção que abre esta crônica diz Martinho da Vila: “Eu conheci um cara/ Que queria o mundo abarcar/ Mas de repente/ Deu com a cara no asfalto/ Se virou, olhou pro alto/ Com vontade de chorar”.
Apoiado nestas convicções, à moda de Martinho sem pressa, conclui muito coerentemente que “Devagar,/ Devagarinho, / É que a gente chega lá” (…) “Vou seguindo o meu caminho,/ Sei aonde vou chegar”.
Nos anos sessenta, ele emplacara, não apenas um sucesso, mas uma profecia com O Pequeno Burguês: “Felicidade!/ Passei no vestibular,/ Mas a faculdade/ É particular”.
O narrador, depois de muitas peripécias, comuns àqueles que o governo chama estudantes que trabalham, mas que são em verdade trabalhadores que estudam, pois a principal ocupação não era, como não é ainda, estudar, e sim trabalhar para pagar os estudos, não tem dinheiro para pagar as taxas que incluem o anel, o diploma e a beca de formando. Por isso não pode comparecer à formatura.
Todavia, repele com firmeza o título de pequeno burguês: “E depois de tantos anos/ Só decepções, desenganos/ Dizem que sou um burguês/ Muito privilegiado/ Mas burgueses são vocês/ Eu não passo/ De um pobre coitado/ E quem quiser ser como eu Vai ter é que penar um bocado”.
Pensando bem, à luz de suas canções tão fascinantes e de forte conteúdo social, Martinho da Vila não é aluno. Ele é professor! E, por justo reconhecimento, a UFRJ concedeu-lhe no ano passado o título de Doutor Honoris Causa.
É proverbial o elogio da vagareza, muito bem sintetizado no dito do dialeto italiano “piano, piano, se va lontano” (devagar se vai longe), enquanto a pressa, dada como inimiga da perfeição, é vitimada neste outro dito bem brasileiro: “apressado come cru”.
Endossada na música, no ritmo e no balanço que lhe são característicos, a canção de Martinho da Vila expressa com graça a irritante retomada da economia brasileira. Neste caso, vai tão devagar que até parece que não sai do lugar.
*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra