Ligações perigosas
As novas multinacionais brasileiras do crime florescem no controle das rotas de tráfico em direção ao Atlântico
Publicado no Globo
Chegaram em silêncio. Na virada do ano, os Estados Unidos aumentaram o número de agentes especializados em tráfico de drogas e terrorismo nas maiores cidades das fronteiras do Brasil com o Paraguai e a Bolívia, que somam 4,7 mil quilômetros. Investigam suspeitas de conexão de um grupo criminoso paulista, o PCC, com uma ala paramilitar da organização política libanesa Hezbollah.
De raiz fundamentalista islâmica xiita, o Hezbollah é visto com simpatia em parte do mundo árabe. Porém, uma de suas milícias, a Organização de Segurança Externa, é classificada como terrorista por EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, União Europeia, Argentina e Israel.
O Brasil tem 15 mil quilômetros de fronteira com dez países. Quatro deles (Colômbia, Peru, Bolívia e Paraguai) são os maiores produtores de cocaína e maconha. As novas multinacionais brasileiras do crime florescem no controle das rotas de tráfico desses países na direção do Atlântico.
Em Brasília, sobram evidências da expansão de alianças financeiras e logísticas entre bandos transnacionais para cadeias de produção, transporte, distribuição e exportação à Europa, África e ao Oriente Médio, sobretudo via Rio e São Paulo.
São os laços tecidos nesses “corredores” que viabilizam o contrabando. Exemplo: parte do armamento usado como moeda de troca nos comboios de drogas para o Brasil tem origem em arsenais da guerrilha colombiana Farc, recém-desmobilizada. Núcleos das Farc (como as Frentes 1, 17 e 16) rejeitaram a dissolução e lideram o tráfico na fronteira Brasil-Peru.
Na região Oeste, dois dos maiores grupos criminosos brasileiros, o paulista PCC e o carioca CV, disputam a hegemonia no comércio de drogas em cidades da fronteira com o Paraguai e Bolívia. Ao Norte, na fronteira com Peru e Colômbia, paulistas e cariocas lutam com a amazonense FDN pelas rotas fluviais. É nesse ambiente que agências americanas (DEA, FBI e antiterrorismo) tentam confirmar elos da máfia paulista com a ala paramilitar do Hezbollah.
A repressão não atinge 3% do movimento estimado num mercado onde o lucro é exponencial. Pela cotação da semana passada, um quilo da folha de coca custa em média US$ 0,50 (ou R$ 1,65) em plantações do Peru. Metade da produção desse país é enviada à Bolívia como pasta base para refino. Exportado do Brasil, o quilo de cocaína é vendido a US$ 70 mil (R$ 231 mil) no varejo americano ou europeu.
O crescimento das exportações, via Brasil, é atestado pelos sucessivos recordes no confisco — ano passado foram 44,7 toneladas de cocaína e 313 de maconha. Na esteira disso há uma injeção de capital nas regiões de trânsito. E como os serviços auxiliares na rota são remunerados com droga, outro efeito é a expansão do tráfico doméstico. A consequência está no aumento da taxa urbana homicídios (23% na última década). O que acontece na fronteira se reflete nas cidades.
Esse processo de internacionalização de grupos criminosos brasileiros ocorre numa etapa de debilidade institucional, agravada pela crise fiscal e por incompetência demonstrada do Executivo, Legislativo e Judiciário. Há excesso de diagnósticos e discursos baratos. E há, também, uma clara tendência de aumento do patrocínio do narcotráfico na campanha eleitoral que se inicia. Até porque, como dizia o poeta Ferreira Gullar, “a vida só consome o que a alimenta”.