Feliz Natal para tia Goinha
Exposto à liberdade que ajudou a florescer, o Cristianismo talvez seja a doutrina religiosa mais contestada ou combatida, entre as três monoteístas
Valentina de Botas
São oito Marias e oito Josés os filhos dos meus avós maternos; mamãe, a caçula, se entristece com a morte dos irmãos que se vão na ordem em que nasceram; a tristeza dela me silencia por dentro. Nesta sexta-feira, quando Maria da Anunciação ou tia Goinha, a sexta mais velha, se foi, mamãe perguntou em uma oração se choraria todos os 15 irmãos. Saiu da oração – vejo orações como um lugar – com a resposta de um estoicismo em que só um cristão (um religioso) autêntico que não esquece o menino na manjedoura se consola: eu não sei, Deus é quem sabe e será como Ele quiser. Meus avós chamavam titia de Glória por ser Anunciação, daí Glorinha, mas os filhos e sobrinhos dela não conseguiam falar Glorinha, então ficou Goinha mesmo. Serelepe e exímia tocadora de sanfona enquanto teve saúde e divertida mesmo doente, teve paz aos 94 anos, depois de meses morrendo devagar de uma doença incurável. Cristã verídica como mamãe, acreditava que só na morte – o nascimento para a vida eterna reservada aos salvos pela Graça – os cristãos têm paz. O que não se confunde com amargura ou infelicidade em vida.
O Natal é curioso: o desencantamento (nos termos do sociólogo Max Weber) com o mundo e a secularização da figura de Jesus – ah, não foi no dia 25 de dezembro que ele nasceu; ah, os problemas de tradução e de “legitimidade” do cânone bíblico; ah, a Cristandade não é original, ela plasma o pensamento helênico e mistura tradições orientais (como ensina o historiador inglês Paul Jonhson no fundamental “História do Cristianismo”); ah, blablabla – pretenderam criticar Jesus e a fé, mas só atingiram as representações institucionais de um e de outra, de forma que os questionamentos resultaram, paradoxalmente (ou não muito), na reafirmação da transcendência do Filho de Deus já que as tentativas de O desacreditar, num mundo desencantado, demonstram que o nascimento de Jesus e a experiência espiritual de quem O busca têm apelo ainda maior e reorganizador de uma existência humana atada ao caos. Ou seja, se o homem confronta o Deus histórico, Aquele simbólico se fortalece. Afinal, que Deus é esse que precisaria de confirmação pelos precários recursos humanos? Que fé é essa que exige prova?
O Natal lembra aos cristãos tudo isso, ou deveria, além daquela receita do leitãozinho de leite com molho de acerola que não resseca, igual à de tia Goinha. Apesar de não me entregar à comilança, à correria das compras ou das viagens desta época – até com uma pontinha de inveja (vai vendo a cristã!) –, não vejo problema em que isso faça parte da celebração de uma data, mas a celebração daquele menino na manjedoura, a meu ver, não tem dia fixo e poderia acordar uma alegria cotidiana se compreendêssemos profundamente nossa transitoriedade, uma alegria que poderia fazer o que é pó em nós visitar o eterno. Essa compreensão visceral iluminou o coração de Tia Goinha até seu último minuto consciente e, sem querer ferir os cristãos mais sensíveis, ela dizia que a vida é curta demais para comermos leitão ressecado, que um leitãozinho de leite no ponto religa nossa existência material à nossa essência que integra o Sagrado.
Se a história do Cristianismo contempla trevas e contradições, como o fato de Santo Agostinho, um dos seus mestres mais brilhantes, ser o inspirador da Inquisição, é só nos países de maioria cristã ou com forte presença/história cristã vigora um regime político com liberdades individuais, como a de ter ou não uma religião. Exposto à liberdade que ajudou a florescer, o Cristianismo talvez seja a doutrina religiosa mais contestada ou combatida, entre as três monoteístas, e, se a institucionalidade perdeu força, seu fundador, apontam estudos previsivelmente publicados a cada Natal, está cada vez mais popular.
Tento ser cristã, é dificílimo, e falho miseravelmente todo dia. Mas continuo tentando na busca particular, pessoal e racional impondo à razão – sempre arrogante – limites que ela desconhece, não por sua desejável inquietude, mas por ser metida a besta na convicção de que a explicação que ela tem para as coisas são as únicas que legitimam ou validam a existência das coisas. A questão não é de data, mas de experiência espiritual e existencial simbolizada pelo nascimento atemporal daquele menininho que, Bem Absoluto em si, marcou, na gênese, o Cristianismo com teses e antíteses ainda sem uma síntese: a boa nova efetivada num contexto que incluía a matança de inocentes decretada por Herodes numa demonstração aguda da ambiguidade desgraçada do mundo e dos mistérios do divino que nos desafia – mesmo e porque diante do mundo para cujo desencantamento contribuímos cada vez que esquecemos do menino na manjedoura – a reconhecer, aprender e cultivar a pureza no nosso coração como a daquela criancinha.
Nem sei o que eu diria à jovem Maria que não acusou o anjo Gabriel de, sei lá, mansplaining (ou angelsplaining), que ele não tinha “lugar de fala” (preciso atualizar minha lista de expressões detestáveis – olha a cristã, Deus tá vendo!), que ele não sabia o que era ser mulher naquela sociedade judaica-agrária-patriarcal-etc., nem ficou de mimimi e topou a peregrinação até Belém carregando o precioso barrigão. E ao nosso bom José, então, que não se importou com o escárnio alheio sobre a gravidez da noiva com a qual ele não se deitara? Que sorte a nossa não serem dois ressentidos-ofendidos.
Ser cristão não significa ter paz; paz é pagar os boletos, ter o filho de volta para casa são e salvo depois da balada, é o vizinho aprender a tocar a segunda música no curso de clarinete depois de tocar a primeira por 4 meses 37 vezes ao dia, é a aposentadoria do ministro Marco Aurélio do STF, é não sobrar mês ao final do salário, é ter um salário. O dilaceramento do cristão é de si consigo no enfrentamento de sua finitude e da existência do Mal de tênue diferenciação do Bem. Seu tormento não atormenta o próximo, antes o move a estender a mão ao semelhante, pois o sofrimento deste participa do tormento do cristão. O cristão, mas cristão mesmo – não eu, uma honesta aprendiz precária; ou os farsantes na pele de um horrendo João de Deus; de intoleráveis padres pedófilos; de cínicos pastores muambeiros da fé; de uma direita truculenta, que se achando uma Margareth Thatcher, é só uma Perpétua (da novela/livro “Tieta do Agreste”) de batom ou fantasiada em patético avatar de templário do teclado que, em nome de um Deus ou Jesus que desconhece, deforma e entristece, ataca tudo e todos consagrando uma intolerância patológica no altar que erigiu nas redes sociais à espiritualidade indigente e ao conhecimento tosco – sabe que não há fé sem dúvida nem esperança sem receio, mas duvida de si, não da manjedoura. O menino nela é o milagre que nos convida a renascer outros e melhores e que em cada religião ou filosofia/tradição espiritual é representado ou invocado por outros símbolos ou mitos. Em praticamente todas as tradições, predominam narrativas centrais em que a beleza que pode salvar o mundo (como disse Dostoievski) é castigada por ele. Aos que nele estão, feliz Natal e um grande 2019; à tia Goinha, seu merecido Natal em paz.