Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Augusto Nunes Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Coluna
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Feliz Natal para tia Goinha

Exposto à liberdade que ajudou a florescer, o Cristianismo talvez seja a doutrina religiosa mais contestada ou combatida, entre as três monoteístas

Por Valentina de Botas
Atualizado em 30 jul 2020, 20h04 - Publicado em 26 dez 2018, 18h52

Valentina de Botas

São oito Marias e oito Josés os filhos dos meus avós maternos; mamãe, a caçula, se entristece com a morte dos irmãos que se vão na ordem em que nasceram; a tristeza dela me silencia por dentro. Nesta sexta-feira, quando Maria da Anunciação ou tia Goinha, a sexta mais velha, se foi, mamãe perguntou em uma oração se choraria todos os 15 irmãos. Saiu da oração – vejo orações como um lugar – com a resposta de um estoicismo em que só um cristão (um religioso) autêntico que não esquece o menino na manjedoura se consola: eu não sei, Deus é quem sabe e será como Ele quiser. Meus avós chamavam titia de Glória por ser Anunciação, daí Glorinha, mas os filhos e sobrinhos dela não conseguiam falar Glorinha, então ficou Goinha mesmo. Serelepe e exímia tocadora de sanfona enquanto teve saúde e divertida mesmo doente, teve paz aos 94 anos, depois de meses morrendo devagar de uma doença incurável. Cristã verídica como mamãe, acreditava que só na morte – o nascimento para a vida eterna reservada aos salvos pela Graça – os cristãos têm paz. O que não se confunde com amargura ou infelicidade em vida.

O Natal é curioso: o desencantamento (nos termos do sociólogo Max Weber) com o mundo e a secularização da figura de Jesus – ah, não foi no dia 25 de dezembro que ele nasceu; ah, os problemas de tradução e de “legitimidade” do cânone bíblico; ah, a Cristandade não é original, ela plasma o pensamento helênico e mistura tradições orientais (como ensina o historiador inglês Paul Jonhson no fundamental “História do Cristianismo”); ah, blablabla – pretenderam criticar Jesus e a fé, mas só atingiram as representações institucionais de um e de outra, de forma que os questionamentos resultaram, paradoxalmente (ou não muito), na reafirmação da transcendência do Filho de Deus já que as tentativas de O desacreditar, num mundo desencantado, demonstram que o nascimento de Jesus e a experiência espiritual de quem O busca têm apelo ainda maior e reorganizador de uma existência humana atada ao caos. Ou seja, se o homem confronta o Deus histórico, Aquele simbólico se fortalece. Afinal, que Deus é esse que precisaria de confirmação pelos precários recursos humanos? Que fé é essa que exige prova?

O Natal lembra aos cristãos tudo isso, ou deveria, além daquela receita do leitãozinho de leite com molho de acerola que não resseca, igual à de tia Goinha. Apesar de não me entregar à comilança, à correria das compras ou das viagens desta época – até com uma pontinha de inveja (vai vendo a cristã!) –, não vejo problema em que isso faça parte da celebração de uma data, mas a celebração daquele menino na manjedoura, a meu ver, não tem dia fixo e poderia acordar uma alegria cotidiana se compreendêssemos profundamente nossa transitoriedade, uma alegria que poderia fazer o que é pó em nós visitar o eterno. Essa compreensão visceral iluminou o coração de Tia Goinha até seu último minuto consciente e, sem querer ferir os cristãos mais sensíveis, ela dizia que a vida é curta demais para comermos leitão ressecado, que um leitãozinho de leite no ponto religa nossa existência material à nossa essência que integra o Sagrado.

Se a história do Cristianismo contempla trevas e contradições, como o fato de Santo Agostinho, um dos seus mestres mais brilhantes, ser o inspirador da Inquisição, é só nos países de maioria cristã ou com forte presença/história cristã vigora um regime político com liberdades individuais, como a de ter ou não uma religião. Exposto à liberdade que ajudou a florescer, o Cristianismo talvez seja a doutrina religiosa mais contestada ou combatida, entre as três monoteístas, e, se a institucionalidade perdeu força, seu fundador, apontam estudos previsivelmente publicados a cada Natal, está cada vez mais popular.

Continua após a publicidade

Tento ser cristã, é dificílimo, e falho miseravelmente todo dia. Mas continuo tentando na busca particular, pessoal e racional impondo à razão – sempre arrogante – limites que ela desconhece, não por sua desejável inquietude, mas por ser metida a besta na convicção de que a explicação que ela tem para as coisas são as únicas que legitimam ou validam a existência das coisas. A questão não é de data, mas de experiência espiritual e existencial simbolizada pelo nascimento atemporal daquele menininho que, Bem Absoluto em si, marcou, na gênese, o Cristianismo com teses e antíteses ainda sem uma síntese: a boa nova efetivada num contexto que incluía a matança de inocentes decretada por Herodes numa demonstração aguda da ambiguidade desgraçada do mundo e dos mistérios do divino que nos desafia – mesmo e porque diante do mundo para cujo desencantamento contribuímos cada vez que esquecemos do menino na manjedoura – a reconhecer, aprender e cultivar a pureza no nosso coração como a daquela criancinha.

Nem sei o que eu diria à jovem Maria que não acusou o anjo Gabriel de, sei lá, mansplaining (ou angelsplaining), que ele não tinha “lugar de fala” (preciso atualizar minha lista de expressões detestáveis – olha a cristã, Deus tá vendo!), que ele não sabia o que era ser mulher naquela sociedade judaica-agrária-patriarcal-etc., nem ficou de mimimi e topou a peregrinação até Belém carregando o precioso barrigão. E ao nosso bom José, então, que não se importou com o escárnio alheio sobre a gravidez da noiva com a qual ele não se deitara? Que sorte a nossa não serem dois ressentidos-ofendidos.

Ser cristão não significa ter paz; paz é pagar os boletos, ter o filho de volta para casa são e salvo depois da balada, é o vizinho aprender a tocar a segunda música no curso de clarinete depois de tocar a primeira por 4 meses 37 vezes ao dia, é a aposentadoria do ministro Marco Aurélio do STF, é não sobrar mês ao final do salário, é ter um salário. O dilaceramento do cristão é de si consigo no enfrentamento de sua finitude e da existência do Mal de tênue diferenciação do Bem. Seu tormento não atormenta o próximo, antes o move a estender a mão ao semelhante, pois o sofrimento deste participa do tormento do cristão. O cristão, mas cristão mesmo – não eu, uma honesta aprendiz precária; ou os farsantes na pele de um horrendo João de Deus; de intoleráveis padres pedófilos; de cínicos pastores muambeiros da fé; de uma direita truculenta, que se achando uma Margareth Thatcher, é só uma Perpétua (da novela/livro “Tieta do Agreste”) de batom ou fantasiada em patético avatar de templário do teclado que, em nome de um Deus ou Jesus que desconhece, deforma e entristece, ataca tudo e todos consagrando uma intolerância patológica no altar que erigiu nas redes sociais à espiritualidade indigente e ao conhecimento tosco – sabe que não há fé sem dúvida nem esperança sem receio, mas duvida de si, não da manjedoura. O menino nela é o milagre que nos convida a renascer outros e melhores e que em cada religião ou filosofia/tradição espiritual é representado ou invocado por outros símbolos ou mitos. Em praticamente todas as tradições, predominam narrativas centrais em que a beleza que pode salvar o mundo (como disse Dostoievski) é castigada por ele. Aos que nele estão, feliz Natal e um grande 2019; à tia Goinha, seu merecido Natal em paz.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.