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Por Coluna
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Feliz aniversário

Ela cumpriu a promessa escrita no convite, chegou de Uber e foi embora de SAMU. Definitivamente, isso não é para qualquer um

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h28 - Publicado em 5 Maio 2018, 11h27

Heraldo Palmeira

A vida passou ligeira, impiedosamente ligeira! Por sorte, ela se cercou da arte e fez artes a vida inteira. Como por impulso incontrolável, por necessidade gaiata, por estilo de vida, para dar vazão ao espírito livre.

Pincéis e telas das artes plásticas. Tintas e papel e teclados e telas iluminadas para emaranhar letras. Mãos hábeis para dar destino às reinações do juízo quente. O jeito de tocar fogo no circo sem deixar queimar a empanada e as cordas.

A minha sorte dos últimos tempos, conhecê-la sem nunca ter visto, neste modo pós-antigo de se viver amizades virtuais. Ouvi a voz soando no infinito digital. Uma ou duas vezes, não mais! Incisiva, fogo e brasa, como se houvesse uma orquestra vocal e não duas cordinhas de nada.

Percebi algo fora do normal nas trocas de mensagens do grupo. Escrevi no particular, ela respondeu “Era uma vez uma velhinha que decidiu fazer os sessenta e nove na pista de dança, com ou sem marido…”, antecipando o vavavu que estava por vir no resto da missiva.

Ela nunca gostou de comemorar aniversário. Quem sabe por que diabos, um ano antes já bradava que estaria na pista de dança no dia dos sessenta e nove – imagino o que vai inventar para os setenta, as apostas estão abertas.

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O anúncio provocou disputas familiares, irmã mandona querendo levar a fuzarca para o Rio de Janeiro, fechar um lugar, convidar seus próprios amigos e outras milongas mais. Filho mexendo os pauzinhos por São Paulo, onde conhecia um “lugar maneiro”. E tudo foi ficando confuso, amigos querendo ir, a certeza de que chegariam também agregados que ela sequer saberia quem eram…

Matreira como toda boa mineira, previu que a festa poderia desandar e decidiu pela sua querida Belo Horizonte mesmo. Apareceu no radar uma certa casa de dança, que seria dividida àquela noite com um velhinho festejando cento e dois anos!

Ainda mais matreira, ela entendeu que aquilo não ia acabar bem, não comportaria o entusiasmo que vinha erguendo há um ano para sua festa inédita. Ora, a regra da casa dizia que o forrobodó rolaria das oito à meia-noite. “Não sou Gata Borralheira para perder o encanto à meia-noite!”.

Ela gostava do ABBA e de tudo de bom que marcou a era disco. Esse era o repertório que escolhera para dar o tom da sua noite. Algo que me transportou imediatamente para minha própria história.

Pensei nas grandes boates – que aprendemos a chamar de discotecas, que viraram danceterias décadas depois – que marcaram época no eixo Rio-São Paulo: Hippopotamus, Papagaio, Frenetic Dacin’ Days, New York City, Banana Power, The Gallery, Sótão… Pensei no sonho estelar de conhecer o Studio 54, em Nova York, que definiu todos os excessos dos anos 70 naquela usina hedonista sem freio, e sua lendária cascata de cocaína.

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Pensei também na Apple Discothèque, que marcou época em Natal, onde atuei como discotecário – que a modernidade transformou em DJ. Uma casa que virou lenda local, pois não devia nada às melhores do país. Instalações de altíssimo nível, ar-condicionado central, som espetacular importado, iluminação deslumbrante e enorme dancing rebaixado com piso iluminado, luxo supremo! E a linha direta que montei com as lojas de discos Billboard, Cash Box e Modern Sound – todas fecharam as portas – nos garantiam um repertório atualizado com os lançamentos musicais mais exclusivos do mercado internacional. Inclusive do Studio 54.

Fico tentando entender como a crítica foi incapaz de reconhecer uma música produzida de forma tão espetacular. Músicos estupendos executando arranjos repletos de naipes de metais e cordas. Uma torrente irresistível que até hoje nos joga na pista ao som de Bee Gees, Chic, Donna Summer, Village People, Michael Jackson, Gloria Gaynor, Barry White, Earth, Wind and Fire, George Benson, Billy Paul, Tavares, Boney M, Grace Jones, Voyage, Sylvester, KC and The Sunshine Band, Kool & The Gang, Sister Sledge, Tina Charles, Patrick Hernandez, Santa Esmeralda, Poussez, Roberta Kelly…

Uma onda tão eletrizante que arrastou até Barbra Streisand e o gigante do pop rock inglês Dire Straits, que acabara de lançar seu primeiro álbum, com o clássico Sultans of swing. Naquele momento, não havia melhor cenário para ganhar o mundo.

Naquela noite, Belo Horizonte teria seu revival daqueles tempos e sons memoráveis. O lugar era pequeno, encantador, duas bandas tocando a partir das onze. Somente amigos e parentes mais chegados foram arrebanhados pelas redes sociais e começaram a chegar, convencidos por um convite com a cara da dona da festa: “Vou fazer sessenta e nove na pista de dança, com banda. Topas? Vou de Uber e volto de SAMU. Quer carona?”

A irmã mandona e o filho levaram adornos coloridos e brilhantes, distribuídos entre os presentes. Todos pareciam crianças em festinha de amiguinho. A aniversariante se dividia entre cumprimentar os amigos, a pista, o bar para mais uma cerveja e a volta arrastando mais gente para a dança.

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Nem teve tempo de comer uns tira-gostos, assim lhe disseram. Apareceu lá pelo meio da noite um outro aniversariante. Trocaram votos, chapéus e fatias dos respectivos bolos.

Ela se esbaldou até as quatro da manhã. Tudo ótimo! Desceu as escadas até o passeio, em algazarra feliz. O abraço da sobrinha que pediu carona, um rodopio sem música, e as duas estateladas de costas no chão, agarradinhas, como metades de um mesmo sanduíche. Vencidas por um grande buraco em volta de uma árvore. A moça sendo levantada com ajuda, a irmã gritando, o filho correndo para socorrer.

A aniversariante dizendo que estava tudo bem, a perna esticada para a frente. Daquela posição, ela não enxergava o pé totalmente para o lado, como se a canela terminasse em toco. Um segurança da casa retirou-a do buraco, repetindo “Ela estava tão feliz!”, deixando clara sua absoluta decepção – aquilo não precisava ter acontecido.

De repente, todos sóbrios, quase por milagre. Dois táxis rumando ligeiros para o pronto-socorro. O socorro ali nem era tão pronto assim, não havia ortopedista de plantão. Rumaram para outro. Como se não houvesse uma dor do cão, como se não houvesse uma aflição medonha.

O remédio para dor servido na maca, como entradinha, ela feliz como se ainda estivesse na festa planejada com tanto esmero. Consolou a sobrinha mortificada de culpa, acalmou a irmã mandona e outras irmãs atarantadas como baratas tontas, já sem qualquer mando, apenas zelosas. O filho e outros filhos batendo cabeça em silêncio carinhoso para demonstrar uma calma tão verdadeira tal a do marido branco como alma – que não ousou ousar não ir à festa, tem juízo.

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O médico com cara séria, já iniciando os primeiros socorros: “É grave!”. E avisou que iria recolocar o pé destrambelhado no devido lugar. Fratura dupla do tornozelo. Dezessete horas de espera na maca como antessala da cirurgia. Ela irremediavelmente feliz, lembrando da festa de uma velhinha encapetada – o senhor marido diz sempre que o diabo é sábio porque é velho.

A luzerna azulada no teto da sala, imagem como aquela que vemos nos filmes, médicos azulados e esverdeados ao redor. Ela sequer percebeu a picada da agulha na veia das costas de uma das mãos, o degrau ascendente na escala da consciência.

Não estranhou encontrar logo adiante a poetisa de pé quebrado caindo literalmente no buraco da Alice das maravilhas, a música com notas de rock soando com baticum distante – como se houvesse um eco.

Adorou passear com Alice e o Gato e o Chapeleiro voando rasante sobre a festa, encontrar o salvador desconhecido, másculo, forte, falante, que lhe resgatou do buraco ao pé da árvore. “Ela estava tão feliz, feliz, feliz…!” – aquele eco de novo!

Passeou sobre uma mesa num ambiente azulado, uma senhora deitada, inerte, o marido branco de medo e um homem vestido de azul olhando para ela e para o pé destrambelhado e falando em tom grave “É grave, grave, grave…! – aquele eco de novo!

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A velhinha voadora encapetada ria o tempo todo para Alice e para o Gato e para o Chapeleiro. Tomou um chá com o gato risonho cor de rosa, ajeitou o chapéu maluco na cabeça, os cabelos esvoaçantes. Sentia um torpor de coisa doce misturada ao sangue e seguia como em um coro sensorial, a trilha de Lucy in the Sky with Diamonds.

Subitamente, a alegria de encontrar El Bebedor feliz, a cara dela mesma! Continuava como se estivesse na festa, ainda mais porque havia aquela sensação de estar nas nuvens, um meio de caminho bom demais entre nada e lugar nenhum.

Quando a gente tá contente
Tanto faz o quente
Tanto faz o frio, tanto faz
Que eu me esqueça
Do meu compromisso
Com isso e aquilo que aconteceu
Dez minutos atrás
Dez minutos atrás de uma ideia
Já deu pra uma teia de aranha crescer
Sua vida na cadeia do pensamento
Que de um momento pro outro
Começa a doer
Quando a gente tá contente
Gente a gente quer pegar
Barata pode ser um barato total
Tudo que você disser
Deve fazer bem
Nada que você comer
Deve fazer mal
Quando a gente tá contente
Nem pensar que tá contente
Nem pensar que tá contente
A gente quer
Nem pensar a gente quer
A gente quer é viver
La, la, la, la, la…

De repente, todo mundo sóbrio, como um despencar em queda livre. A agulha saindo do vinil parando a música, as marcas da lâmina aguda e fria gravadas na carne. Um palco vazio e calado, um jejum de silêncio quebrado, pontos do seu acordo de voltar ao mundo. E o texto desperto pela poetisa do pé quebrado – não ouviu aquele eco de novo!

Acordou repleta de adornos incorporados, muletas e botas imobilizadoras no visual. Sem contar placas e parafusos de metal e um bônus restritivo: dois meses sem pôr o pé no chão. Psicodelia pura! Bobagem para quem tem a varinha de condão que sempre altera tudo para melhor.

Ela cumpriu a promessa escrita no convite, chegou de Uber e foi embora de SAMU. Definitivamente, isso não é para qualquer um. Feliz aniversário!

Trechos de:
Barato total (Gilberto Gil)

Dedicado a:
Ana Nunes, a velhinha encapetada.

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