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Entre Elivelton e o muro, o povo

Quem é o povo? Onde mora? Como vive? A mídia não sabe, mas não lhe faltam teses e certezas a respeito

Por Valentina de Botas
Atualizado em 30 jul 2020, 20h27 - Publicado em 18 Maio 2018, 12h34

Valentina de Botas

A GloboNews perguntou se um policial de folga deve reagir a assaltos a propósito da ação incrível da mulher que matou o facínora: a policial Katia que matou o Elivelton, reagindo a uma tentativa de assalto. Terrível, mas, creio, qualquer cidadão brasileiro esmagado pelo medo e pela sensação de insegurança achará que indizivelmente terrível teria sido “o bem não vencer o mal”, segundo José Roberto Guzzo num artigo brilhante a respeito. Eu o compartilhei na minha página no facebook e, o jornalista, que me dá a honra e a alegria de ser meu leitor, respondeu com atenção aos leitores numa conversa pontuada por comentários preciosos, próprios de um jornalista e de um ser humano de rara linhagem. Ao comentário do querido leitor Régis Ferreira à pergunta da GloboNews, Guzzo fez algumas considerações sobre o que “certa mídia chama de ‘causa popular’ e como transformou Katia numa inimiga dessa causa”.

Resisto a resumir a realidade à minha experiência, mas é a partir desta que posso me posicionar quanto àquela de modo sincero, mesmo não abrangente. Do individual para o universal não há questão de escala, mas de identificação. Me identifiquei com cada mãe ali, acuada entre Elivelton e um muro. Me identifiquei com Katia até que ela sacou a pistola. Não sei manejar armas, nem quero saber, não me imagino no lugar da grande policial e agradeço às pessoas vocacionadas para esta carreira, que vão aonde eu jamais iria e fazem o que não quero fazer. Muita gente com quem conversei se sentiu de alma lavada. Compreendo. Mas não consigo sentir o mesmo. Talvez porque minha experiência já passou e é imutável como só o passado sabe ser; nela, o mal golpeou o bem: minha irmã foi baleada na cabeça durante um assalto em que não houve reação, ela só se negou a tirar a roupa. Era noite de Natal e ela tinha 14 anos, dois a menos do que eu que sou a mais velha de quatro irmãs, dois a mais que a segunda irmã do meio e quatro a mais que a caçula. Mamãe e eu fomos na ambulância. Eu, impressionada que alguém tão machucado pudesse manter a consciência. Perguntei se doía, ela perguntou se doía o quê. Os médicos explicaram depois que era uma vigília inconsciente. Tão bonita minha irmã, meu coração. 

Seis ou sete anos antes, Sílvio Santos disse que ela deveria ser a Cinderela porque era a mais bonita. A Kombi veio nos buscar numa manhã gelada: minha carta fora sorteada para o programa “Boa Noite, Cinderela” (quem lembra?). Ao som de “Pompa e Circunstância” de Edward Elgar, ela subiu desconfiada a escadaria no meu lugar até o trono para conversar com o Sílvio. Olhava para trás para ver se mamãe estava por perto. Achei ótimo, sempre tive medo de altura e só me interessava o que motivou a carta: uma máquina de costura nova para mamãe porque a antiga estava quebrada e as costuras compunham o orçamento doméstico. Algumas coisas a gente aprende muito cedo. Também ganhamos uma geladeira, que não pudemos ligar por meses porque consumia uma energia elétrica que não cabia na nossa conta de luz. Só a ligávamos para impressionar visitas esporádicas. Imaginem oferecer-lhes água com cubos de gelo! As amigas de mamãe contaram que era só assim que Francisco Cuoco tomava água nos intervalos das gravações da novela “O Astro”, leram na revista “Sétimo Céu”. Pensem no luxo daquilo. Joãozinho Trinta sempre teve razão ao lado de Nelson Rodrigues que dizia que “o homem só é feliz pelo supérfluo; ncomunismo, só se tem o essencial. Que coisa abominável e ridícula!“.

Na ambulância, mamãe chorava baixinho, rezava conversando com a Virgem Maria “de mãe para mãe” e cantava uma cantiga de ninar do tempo em que morávamos numa casa de três cômodos. Não morreu. Milagre, diagnosticaram os médicos incrédulos. Ter sobrevivido lhe custou a visão. Perguntei a ela o que achara do embate entre o bem e o mal. Também não sentia a alma lavada, mas gratidão e alegria pela vida de Katia e das pessoas que o facínora não matará nem aterrorizará. Não é pouco e, se não nos lava da alma o que não é lavável, toca-lhe e a aquece. Naquela véspera do Dia das Mães pensei na mãe de Elivelton. Sou assim. O que fazer? Pensei nela. Isso também talvez seja um luxo, a coragem que aprendi, libertar-se do que quer nos atar.

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E a GloboNews? Não há fatos de direita nem fatos de esquerda. Tom Wolfe, falecido esta semana, disse que nada alimenta mais a imaginação do que os fatos reais. A expressão “fatos reais” é uma explosão de redundância, mas, observando o que certa mídia faz com eles na sustentação da tal “causa popular”, o que exige licença poética para denominá-la jornalismo, penso que a redundância se tornou esclarecimento obrigatório. A “causa popular” para tal mídia é aquela habitada pelo povo de manual, como uma entidade abstrata. Quem é o povo? Onde mora? Como vive? A tal mídia não sabe, mas não lhe faltam teses e certezas a respeito. Então, quando vê pessoas do povo popular em carne, osso e presença como a policial e o bandido, enxerga em Elivelton todo o quanto de “povismo” porque o facínora é o oprimido. Por quem, santo Deus? Por quem não rouba nem mata? Minha irmã ensanguentada, mamãe recorrendo à longa amizade com Nossa Senhora, eu em agonia com a agonia de ambas, éramos o quê? Opressores do Elivelton que se abateu sobre todas as nossas noites de Natal desde aquela? Povo só se legitimado pelo Comissariado da Causa Popular? Ou só uns infelizes do lumpesinato que, não sabem, mas anseiam pela iluminação que o PSOL e artistas-e-intelectuais lhes darão ainda que recusem? Olhe com atenção, dona mídia: entre Elivelton e o muro, o povo, Katia incluída porque, afinal, sua ação bem-sucedida nem sempre é recomendável.

Katia, de dentro de sua concretude, desorganiza o manual da “causa popular”: ela até pode ter agido corretamente, mas foi no dia incorreto ─ o da folga ─, decide a GloboNews engajada. Depois de as ideias de esquerda terem dado errado somente onde foram tentadas, envelheceram e vieram morar no Brasil, como dizia Millôr Fernandes, e os militantes profissionais procuram refúgio para elas em fósseis ideológicos. A busca se tornou dramática quando as esquerdas perceberam que o proletariado não faria revolução nenhuma, que o que ele quer é comprar a casa própria e um carrinho e tirar férias em Porto Seguro pela CVC. Ao mesmo tempo, os novos revolucionários são uns marxistas-nutella, do eixo FFLCH-UFRJ, que usam a camiseta do Che sem saber que não enfrentariam nem duas horas das selvas duras que o assassino encarou, vão de carro e motorista para a escola, queimam ônibus que os pobres de verdade usam e, quando adultos, muitos estudarão cinema em Cuba ou jornalismo na PUC, dirigirão uma ONG cultural com acesso ao cofre do MinC ou uma escola de alimentação gourmet orgânica. Sem problemas, desde que não pensem que essas coisas os fazem moralmente superiores.

A revolução de esquerda conta com eles já que o ingrato povo popular tem mais o que fazer e não está à disposição das patologias ideológicas de certas classes médias e das elites traduzidas em questões narcisísticas e de consciência mal resolvidas. A esperança revolucionária também se abriga no peito do ministro Barroso que enxerga o Brasil de seus janelões de frente para o mar do Leblon; no de Fachin que torce para que o MST triunfe no campo e nas cidades, seja pela extorsão financeira contra os miseráveis reais, seja pela extorsão moral a que aquelas classes se submetem numa agonia artificial gozosa; no de setores do Judiciário e do MPF que encarnam aquele PT messiânico dos anos 80. Como isso se sustenta metafísica e politicamente? Pela crônica dos fatos reais tecida por esta mídia ideologicamente fossilizada que os torna fictícios. A imprensa é livre, falta descobrir isso e libertar-se. Liberdade: esse luxo, esse delito.

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