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Deonísio da Silva e as lições de Millôr

DEONÍSIO DA SILVA Millôr Fernandes foi mais que gênio, e seus escritos serão, eternamente, oxigênio da cultura brasileira. Eu sempre o admirei de longe e em 1974 o procurei com os originais de meu primeiro livro, aquela ânsia meio desarrumada de quem queria estrear. Ele não estava na redação do Pasquim e me deram o […]

Por Augusto Nunes Atualizado em 31 jul 2020, 09h13 - Publicado em 30 mar 2012, 15h09

DEONÍSIO DA SILVA

Millôr Fernandes foi mais que gênio, e seus escritos serão, eternamente, oxigênio da cultura brasileira. Eu sempre o admirei de longe e em 1974 o procurei com os originais de meu primeiro livro, aquela ânsia meio desarrumada de quem queria estrear. Ele não estava na redação do Pasquim e me deram o endereço da casa dele, na Vieira Souto.

Para lá rumei. Outro era o Brasil. Subi e fiquei esperando, ele logo chegaria, mas não chegou, eu tomei um cafezinho, embora um carrinho cheio de bebidas me tenha sido posto à disposição.

Os anos passaram. Na década seguinte, lá estávamos, desta vez juntos, em mesa-redonda numa das primeiras Jornadas de Literatura de Passo Fundo, que depois se consolidaram e se tornaram célebres referências de nossas letras (Augusto Nunes também proferiu conferências). Coordenei os debates daqueles eventos inúmeras vezes, bienalmente.

Pois bem! Depois de um desses famosos encontros, realizados sob uma lona de circo, único lugar naquela cidade gaúcha para acolher tantos interessados (cerca de 5 mil; hoje vão mais de 10 mil pessoas), fomos todos para a casa de um dos professores, que nos ofereceu um churrasco. E Millôr desandou a citar diversos autores que eu não conhecia. Mas todos, a quem ele perguntava se conheciam, diziam com segurança que sim e ele citava um livro, que naturalmente os interlocutores conheciam.

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Humilhado, por ser gato de biblioteca (é melhor metáfora do que rato) e ter lido muita coisa que ninguém leu na adolescência, a não ser que tenha sido, como eu, seminarista, ou, como Augusto, filho de professora, disse desolado ao Millôr: “Puxa, eu não li nem conheço nem jamais ouvi falar em nenhum desses autores que você citou!” Então ele começou a citar outros autores, conhecido de poucos, como o célebre botânico e teólogo sueco Emmanuel Swedenborg, aquele que disse que o Céu é proibido aos bobos, não aos maus, porque seria intolerável para o Criador receber ali alguém incapaz de admirar sua obra, Millôr me disse com a maior candura: “Eles não existem, nenhum deles existe, eu inventei. Mas você viu que muitos colegas seus leram e apreciaram. Você precisa ler menos, Deonísio, e mentir mais”. E voltamos para o convívio alegre dos que bebiam e diziam conhecer qualquer autor que porventura fosse citado.

Em São Carlos (SP), onde então morava, narrei o ocorrido ao filósofo Bento Prado Júnior, meu colega na UFSCar. Ele gostou da ideia e escreveu, em parceria de alguns outros amigos de São Paulo, um número especial do suplemento Folhetim da Folha de S. Paulo, sobre um suposto poeta, esquecido pelo cânone da literatura brasileira, cujo nome era Agrícola de Almeida. Meses depois, ouvi, em encontros universitários, professores, tão pernósticos quanto esses aiotolás do idioma que defendem “nois pega o peixe”, citando a recente “descoberta”. De bom coração, alertei meus colegas para o imbróglio. Eles me olharam com desconfiança e disseram que iriam conferir. Repliquei: “Deviam ter conferido antes!”.

De vez em quando citando o gênio, um dia ele me escreve para dizer que eu o citara errado, mas que ficara quase melhor. Citando, e declarando que o fazia de ouvido, eu escrevera: ‘Como diz Millôr, “ontem” a gente escrevia “hontem” com agá e “oje” sem agá. Mas “hoje”, escrevemos “hoje” com agá e “ontem” sem agá’. A frase do Millôr é: “Ontem, ontem tinha agá, hoje não tem. Hoje ontem tinha agá e hoje, como ontem, também tem.”

Millôr Fernandes morre no mesmo ano em que, por falta de alunos, a Universidade Estácio de Sá fechou o câmpus Millôr Fernandes, que o homenageava no Meyer. O fundador da Estácio homenageara o amigo em tempo de ele saber disso ─ e por muitos anos.

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Acho que a morte de Millôr coincide com o fim de uma época. Não morreram todos, mas estão em desaparecimento intelectuais autodidatas, que aprenderam muitas vezes mais e melhor do que os doutores, mas que, se quiserem ensinar numa universidade, terão de apresentar diplomas que nunca obtiveram, justamente porque, entre outras razões, o talento deles não coube na universidade, onde uns ficaram alguns anos e outros, mais desconfiados, nem procuraram.

Escrevo isso com tristeza, mas também com orgulho. Uma coisa é ser aluno de Napoleão Mendes de Almeida. E outra, bem diferente, é ser aluno de Guilhermino César ou de Eduardo Portella, como eu fui. Eles me ensinaram a humildade dos ofícios, mas também a altivez diante dos embusteiros de qualquer área.

Millôr, sim, é imortal, não esses farsantes que entram para as Academias mediante os mesmos conchavos que fazem na política.

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