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Por Coluna
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Autorretrato

Eu tive a sorte de ver aquela mulher que me tirou de dentro dela e não saiu nunca mais de dentro de mim preparando outra pessoa, a minha irmã

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 19h43 - Publicado em 18 Maio 2019, 11h36

Heraldo Palmeira

O domingo amanheceu comum, aquela coisa preguiçosa de ficar na cama querendo parar o tempo um pouquinho para ele durar mais.

“Deito mais tarde que devo

E acordo antes do que gosto”

Abri os olhos e a primeira sensação de que estava acordado foi lembrar do que me escrevera um amigo generoso, que, relendo poemas da sua juventude, reencontrou Vinícius em Auto-retrato. E dali retirou três versos que julgava associados às minhas motivações para escrever.

Infância: pobre, mas linda

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Tão linda que mesmo longe

Continua em mim ainda

Também cumpro o ritual comum a todos, dar uma olhada inicial nas mensagens das redes sociais onde estamos irremediavelmente pendurados. E havia uma torrente específica delas, por causa do Dia das Mães. Inclusive aquela foto maravilhosa de mãe e filho entregues ao seu amor, que está na abertura.

Gosto de manter um radinho ao lado da cama. Serve também de despertador, ligado numa rádio AM para as notícias dos dias comuns.

Nos fins de semana dou folga, ele amanhece calado e sem nenhum comando para acordar antes de mim e me despertar. Mas, paixão é paixão, ligo para ouvir o mundo, pois os sábados e os domingos se acham, mas são só mais duas peças diárias do cotidiano.

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Acredito que os deuses da saudade irremediável estavam em conluio para me sacudir da cama ou me deixar prostrado nela, pois fizeram tocar no radinho uma música singela da infância ─ aquela que continua em mim ─, no exato momento em que abri na telinha do celular uma mensagem talhada para nocautear qualquer coração.

Minha mãezinha querida

Mãezinha do coração

Te adorarei toda vida

Com grande devoção

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É tua esta valsinha

Foste a inspiração

Oh, minha mãe

Minha santa, querida

És o tesouro

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Que eu tenho na vida

A mensagem mostrava a foto de folhas verdes e uma bela flor dentro de um jarro, um gramado muito bem cuidado ao lado de uma peça de granito. Era um jazigo, num desses cemitérios horizontais, sem túmulos, onde parece que a paz fez morada naquele silêncio cortado apenas pelos sussurros do vento.

Logo abaixo da imagem, a frase que marcou como brasa na carne: “Mamãe, tire uma folguinha aí no céu e hoje venha ficar um pouquinho comigo, matar minha saudade”.

Sim ─ não foi só você ─, eu li e reli a frase sei lá quantas vezes, cada vez com uma sensação diferente: dor, angústia, choro, contorções, posição fetal, desamparo, saudade quase física (talvez a pior de todas, a falta mais intensa porque parece quase presença), calma, suavidade, recompensa por ter sido filho, poesia…

Tive a sorte de ver aquela mulher que me tirou de dentro dela e não saiu nunca mais de dentro de mim preparando outra pessoa, a minha irmã. Que está aqui pertinho, como uma extensão daquela mulher matricial, maternal. Que se entregou aos efeitos do tempo para ir ficando tão grande quanto nossa matriz, uma fiel em plena comunhão com sua catedral.

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Foi mais um dia para ter certeza de que mães sempre morrem precocemente, não interessa a idade. Foi mais um dia de romaria para o amor que percorre a distância celestial entre o meu coração e o da minha mãe, um caminho sem placas e sem indicações, sem explicações, mas que não desaparece nunca, permanece nítido como um luar do sertão, como estrelas na escuridão.

Foi mais um dia para ter certeza de que posso roubar palavras de um querido amigo e dizer para minha mãe, em devoção, que eu só queria vê-la e olhar seu olhar, seu olhar, seu olhar, minha senhora desaparecida. Juro que estaria satisfeito mesmo que ela não dissesse uma palavra. Como aquela santa aparecida que apenas me ouve lá no altar, mas nunca me deixa falando sozinho.

A casa estava em silêncio, todos haviam saído. O café preto e as outras delícias da manhã foram se traduzindo em poções de vida boa. Conheço poucos prazeres como sentir aquele cheiro insuperável, só exalado no exato momento em que a água fervente vai ficando cheia de bossa e de cor depois de passar pelo pó no coador.

Pensei no mistério da vida, nos meus dias que podem ter manhãs amanhecendo ainda no escuro ou já no início da tarde, sempre resultado direto da noite anterior.

Pensei na minha mãe sempre tão suave, e na infância, na poesia que havia nelas. Tempo que fingia parar quando os adultos apagavam velas e lamparinas que iluminavam a casa do interior e eu levantava em seguida, quase flutuando, enquanto todos já dormiam, só para olhar o céu de estrelas e conversar com Deus ─ só porque minha mãe conversava com Ele.

Se eu quiser falar com Deus

Tenho que ficar a sós

Tenho que apagar a luz

Tenho que calar a voz

Tenho que encontrar a paz

Tenho que folgar os nós

Dos sapatos, da gravata

Dos desejos, dos receios

Tenho que esquecer a data

Tenho que perder a conta

Tenho que ter mãos vazias

Ter a alma e o corpo nus

Tenho que dizer adeus

Dar as costas, caminhar

Decidido, pela estrada

Ah, a poesia, esse mistério que nos mantém vivos e fala por nós.

 

Natal (RN), maio de 2019

Trechos de:

Auto-retrato (Vinícius de Moraes)

Mãezinha querida (Hilton Junqueira-Jaime Vila-José Henrique Lins)

Se eu quiser falar com Deus (Gilberto Gil)

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