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Arco da aliança

Quando perdemos uma referência urbano-cultural tomamos um susto, talvez alertados pela consciência de que estamos morrendo um pouco também

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 19h45 - Publicado em 5 Maio 2019, 16h14

Heraldo Palmeira

A cidade da minha infância e juventude tinha seus ícones particulares, como qualquer cidade. Aquelas figuras populares que todos conhecemos do cotidiano das ruas, com uma enorme falsa intimidade. Quando morrem, reviramos o baú do esquecimento até percebermos que perambularam na periferia das nossas vidas em certa intensidade e nada sabíamos a respeito deles.

Com a notícia de que uma dessas figuras do patrimônio popular havia silenciado, dei um enorme passo para trás no tempo para reencontrar uma cidade encantadora em pleno fulgor da virada dos anos 60/70, prenhe dos sonhos traçados pela nossa juventude e pelo intenso caldeirão político-cultural que sacudia o mundo naquele momento.

Tínhamos um elenco local com ares chaplinianos, três ou quatro “artistas oficiais”. Um pintor sempre debaixo de um chapelão de palha e vestido de branco angelical lambuzado de tintas e cores, algo extremamente psicodélico! Um eterno rei momo, monarca indiscutível da tribo foliã, um nobre da bagunça. Um cego que vendia bilhetes de loterias, rei do chiste que distribuía sua alegria gratuita como prêmio maior. Um fotógrafo de baixíssima estatura e bigode monumental que quase servia de acessório às suas Rolleiflex e Yashicas. Alguns ainda vivos. E havia uma figura enigmática: o homem da rabeca.

Aqueles eram tempos em que as festas particulares não careciam de produção alguma e bastava amontoar um bocado de amigos ao redor de um bom motivo e uma mesa com cerveja gelada. Não houve festa de aniversário ou qualquer acontecimento familiar de maior destaque sem a presença daquela criatura extremamente triste. Triste como seu arremedo de cantoria e o som do instrumento que virara sua cara-metade. Quando entrava em ação, era difícil distinguir entre atração artística e curiosidade humana.

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Falava pouco, com uma fala quase incompreensível, e o estrabismo reforçava o ar perdido do seu olhar. Um boné surrado na mesma cor café com leite que a polícia usava na época , com alguns emblemas costurados, denunciava algum fetiche militar, talvez um sonho secreto de ser soldado por profissão. Algo que merecia o zelo extremo de manter à mão agulha e linha para refazer as costuras diante do menor sinal de necessidade de reparo. Urgência que não poupava da espera qualquer plateia. Afinal, devia pensar entre seus botões, figurino é figurino.

Na verdade, aquele homem era tão incompreensível quanto a música que imaginava tocar na rabeca, cujo repertório era centrado em clássicos nordestinos e cirandas pernambucanas. Viveu espremido na exata divisa entre passado e futuro, trilhando um presente cruelmente incerto todos os dias. Caminhava sobre partituras imaginárias onde o som acabava a qualquer momento, sem um mínimo de cerimônia e podendo retornar instantes depois. Era como se sua música e sua vida transcorressem nesses lapsos, em arranjos sem notas precisas, sem maestro e sem nexo.

Nos últimos tempos escolhera dois pontos para apresentar sua mendicância musical: uma sorveteria, reduto da classe média, e uma ponta de calçada numa rua popular, na outrora fulgurante microrregião comercial do centro. Instalado no passeio, sob sol devastador, tocava para as almas num palco imaginário. Desaparecia no meio da indiferença dos passantes, à espera das moedas que teimavam em não cair na caixa do instrumento, surrada como sua própria vida.

Encerrou seu espetáculo solitário num domingo de janeiro, talvez desconfiado de mais um ano que teria de enfrentar com as mesmas armas. Tinha sessenta e cinco anos e se curvou ao enfisema pulmonar. Músico de muitas limitações, ele foi um desses anjos tortos que permitiu à música roçar as vidas de outras criaturas que, como ele, vagaram pelas ruas incertas da ilusão antes de descobrirem que o nome disso é desilusão.

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Quando perdemos esse tipo de referência urbano-cultural tomamos um susto, talvez alertados pela consciência de que estamos morrendo um pouco também. O homem da rabeca se foi como um paradoxo, deixando um legado silencioso do qual nunca teve consciência: o tempo feliz que representou sem saber. Um tempo que ainda podemos visitar revendo filmes e fotografias, relendo livros e ouvindo as velhas canções que nos fizeram acreditar, quando jovens, no paraíso terreno.

Um lugar que ele tentou conquistar deslizando um arco sobre as quatro cordas intangíveis da sua rabeca. Vã tentativa de estabelecer aliança com um falso paraíso que o acolheu por simples caridade, e que não lhe permitiu um passo além da dureza das suas calçadas. Um paraíso de mentira que transformou aquele pobre homem numa esfinge. Sem direito a estátua. Sem direito a quase nada além da lembrança triste de alguém como eu.

(*) Agradecimentos especiais a Marcus Guedes, por ajudar a organizar estas memórias com sua memória prodigiosa.

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