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Por Coluna
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A confraria

Todos os frequentadores estão preparados para resolver ou rir dos problemas do mundo e voltar para casa com outros tantos insolúveis

Por Heraldo Palmeira
Atualizado em 30 jul 2020, 20h32 - Publicado em 4 mar 2018, 15h31

Heraldo Palmeira

Há quase 25 anos era somente um sebo de CDs – compra, venda e troca. O dono ficava sentado na calçada do outro lado da rua, num boteco, tomando sua cervejinha. Quando entrava algum cliente, ele dava um subtotal, atravessava e atendia o amante da música. Claro, torcendo para aquilo demorar pouco, pois as louras geladas são temperamentais, esquentam logo. Ainda mais naquele ambiente tropical.

Dois anos depois de abertas as portas, já no endereço atual, um amigo trouxe umas latinhas de cerveja. Estava aflito com um problema pessoal e queria conversar com o dono do sebo. Daí surgiu a “determinação etílica” de colocar uma geladeira dentro da loja.

Uma gigante multinacional quis tocar um solo e ofereceu um cooler para refrigerantes, que o operoso comerciante tratou de, retiradas as serpentinas, transformar em geladeira para as latinhas da mesma marca de cerveja que vende até hoje. Naquele tempo, fazia a festa dos abnegados da música, pois não cobrava por elas – quem comprasse CDs, bebia de graça.

A multinacional – que também era dona da marca de cerveja escolhida – não gostou da traquinagem e recolheu o cooler. O homem comprou sua primeira geladeira. Os amigos foram trazendo panelas, talheres, pratos, fogão e montaram um novo acervo, culinário, que virou uma minicozinha industrial pronta para os melhores sabores dos iniciados na arte de cozinhar.

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Quando os CDs deram lugar aos DVDs, a casa migrou para a novidade e seguiu oferecendo suas obras de referência e raridades. Aberta de segunda a sábado, com domingo reservado para a faxineira dar uma geral e entregar o serviço ao redor das dez da manhã.

Num dos domingos, o dono repetiu o costume de receber a casa limpa para mais uma semana de prazeres. Um amigo ia passando e entrou. Foi o primeiro de todos os domingos em que a casa “abre a meio-pau”, nas palavras dos confrades. Tradução: fica aberta apenas a porta lateral que dá acesso a um beco, ligado diretamente à rua.

Hoje, todos os sábados, os homens começam a chegar a partir das onze da manhã. Como se aquilo fosse religião. E é! Coisa de anos a fio, e o grupo se renova com um amigo que traz um novato desconhecido ou por descendentes dos pioneiros.

Nesses anos de entra e sai, o lugar pode não abrir em determinado dia, se houver a menor suspeita de que não vai ter frequência que justifique escancarar a porta – um critério empírico que seguirá impossível de tornar-se estatístico, apesar de ser essa a formação acadêmica do dono. Conte-se aí alguma crise de preguiça também.

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A confraria junta tudo quanto é modelo: jornalistas, publicitários, procuradores, juízes, empresários, médicos, advogados, políticos, escritores, músicos e o escambau. Todos preparados para resolver ou rir dos problemas do mundo e voltar para casa com outros tantos insolúveis.

O ambiente, uma casa transformada para os encontros, oferece três salas e banheiro. E um grande quintal, que serve para festas específicas, pontuais. Também acolhe pequenos eventos culturais, como lançamentos de livros e apresentações musicais.

Tem logo na entrada os degraus derramados sobre a calçada, que dão acesso à primeira sala, onde está o balcão sagrado de onde o dono comanda a cena. Ao redor dele, apenas três banquetas e mais que outro tanto de amigos de pé, tomando a cerveja estupidamente gelada, uma das marcas do lugar, reforçada pela prosa sem futuro. Da melhor qualidade. Interminável.

O lugar é considerado um fenômeno. Não é bar, não é restaurante, não tem garçons nem cozinheiros e, mesmo assim, é o maior ponto de venda da mesma cerveja long neck de sempre (no Estado). Afinal, hoje já são cinco geladeiras comerciais abarrotadas. É um ambiente prioritariamente masculino, mas as mulheres, quando resolvem aparecer, são sempre bem-vindas.

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O bar, operado exclusivamente pelo dono (detrás do balcão), também oferece uísques e vinhos honestos, e refrigerante – aquele mesmo do cooler transformado. A minicozinha industrial é de uso livre pelos comensais, que trazem o que bem entendem para preparar e dividir à mesa com os amigos. E a limpeza é um dos mandamentos mais respeitados.

Vez ou outra, algum incauto produtor de cervejas especiais chega tentando propor degustação e comercialização do seu produto. O dono nega, elegante e taxativo. Explica que ali é um lugar para quem gosta de “beber com força, como eu”.

A casa abre em dois turnos, antes e depois do almoço, com longo intervalo, porque ninguém é de ferro. Algumas placas de madeira, dessas encontradas em qualquer feira de artesanato, dão as coordenadas do lugar:

Nesta casa não temos empregada. Faça sua parte.

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Cerveja faz mal quando falta.

Eu bebo pra ficar ruim, mesmo. Se fosse pra ficar bão, eu tomava remédio.

É proibido chegar bêbado. Sair, pode.

Não houve qualquer planejamento para transformar o fenômeno Letra & Música – um sebo de CDs que virou sebo de DVDs – em confraria. Tudo foi acontecendo naturalmente, com o esfacelamento do mercado da música.

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Os frequentadores costumam trocar apertos de mão ao entrar e cumprimentar todos os presentes. Não raro, chegam confessando dívidas anteriores, esquecidas pelo teor etílico e pela gentileza do dono, que logo convoca ao pagamento para o sujeito “não ficar mal falado pelos outros”.

Ainda há um acervo de discos na casa. Mas, hoje, o negócio é o afeto que se encerra em garrafas, panelas e conversas de amigos. Ouso dizer, um dos lugares mais agradáveis de Natal, que bem se traduz numa das placas famosas do lugar – que pode estar em qualquer lugar, mas ali tem sabor especial:

Esta casa parece um hospício, somos todos loucos uns pelos outros.

Dedicado a Ary Ramalho, o dono

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