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A banalidade do mal

Biografia de Filinto Müller, chefe de polícia de Vargas, demole o mito do carrasco poderoso e expõe algo perturbador: o homem que cumpre ordens cegamente

Por Augusto Nunes Atualizado em 13 jan 2018, 09h27 - Publicado em 13 jan 2018, 09h01

O título com forte apelo comercial faria sentido se o brasilianista americano R. S. Rose tivesse confirmado em sua revisita ao passado que Filinto Müller, na vida real, fora tão sombrio, brutal e desumano quanto o personagem esculpido por desafetos extraordinariamente inventivos e jornalistas sem compromisso com fatos. A honestidade intelectual do autor resultou numa biografia que exuma não O Homem Mais Perigoso do País (The Most Dangerous Man in The Country, no original em inglês), mas “O Temido Chefe de Polícia da Ditadura Vargas”, como informa já na capa o subtítulo acrescentado pela editora.

Nada disso reduz a relevância da obra; ao contrário. O resgate do Filinto Müller de verdade oferece aos leitores a contemplação de uma espécie que se reproduz com impressionante velocidade nas ditaduras — quaisquer ditaduras — e tem por habitat natural as cercanias dos cativeiros: o homem que executa as ordens que vêm de cima. Sem jamais contestá-las, sem remorsos, sem crises de consciência, sem hesitação.

Até agora, o retrato oficial de Filinto Müller foi o desenhado em parceria por Assis Chateaubriand, um barão da imprensa que jamais respeitou limites éticos ou morais, e David Nasser, um ficcionista fantasiado de repórter. Já indignado com a recusa de Vargas em ordenar a deportação de uma jovem argentina com quem fora casado, Chatô tornou-se um copo até aqui de cólera ao receber a má notícia de um mero chefe de polícia. Decidiu vingar-se, e escalou para a missão o jornalista certo.

Para associar o alvo da fuzilaria à Alemanha hitlerista, Nasser acrescentou-lhe um segundo sobrenome teutônico e criou o supervilão Filinto Strubling Müller, desancado impiedosamente na série de reportagens publicadas na revista O Cruzeiro e depois reunidas no livro Falta Alguém em Nuremberg. O Müller forjado pelo jornalista tornou-se o único integrante do movimento tenentista expulso da Coluna Prestes (“por traição e covardia”). Também lhe foi atribuída a paternidade da ideia de deportar a judia alemã Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes.

Por determinação de Chatô, Nasser qualificou de “nazista” o sorriso de Müller. Era com esse sorriso, fantasiou o jornalista, que o esbirro de Vargas acompanhava com entusiasmo e prazer as sessões de tortura que ocorreram diariamente enquanto durou o regime de exceção. Hábil inventor de tipos, David Nasser fez do brasileiro de Mato Grosso uma versão piorada de Heinrich Himmler.

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No livro de Rose, as fantasias são demolidas por fatos. Müller não foi expulso da Coluna Prestes pela simples razão de que a coluna não existia quando o tenente envolvido na revolução de 1924 desistiu de derrubar à bala o governo Artur Bernardes e exilou-se na Argentina. É verdade que o Estado Novo institucionalizou a tortura, e usou-a para estraçalhar o físico e a alma dos participantes da rebelião comunista de 1935 e do levante integralista de 1938. Mas a CPI criada no Congresso para apurar as violências registradas nos porões da polícia política terminou sem que algum depoente denunciasse a presença de Filinto Müller em alguma sessão de tortura, como participante ativo ou espectador.

Sobram evidências de que o biografado sabia que os métodos usados nos interrogatórios de quem guardava informações relevantes incluíam invariavelmente agressões selvagens e suplícios inverossímeis. Mas as atrocidades só começavam depois que o chefe encerrava o expediente e ia para casa jantar em companhia da família. Rose também demonstra que, por mais poderoso que fosse, um chefe de polícia jamais se atreveria a decidir se alguém seria deportado. No Estado Novo, tal atribuição era privativa do ditador.

Foi Getúlio quem impôs a Olga Benário Prestes a sinistra viagem que a levaria à Alemanha e ao campo de concentração onde seria assassinada. Coube ao chefe de polícia desincumbir-se de mais uma missão — com a habitual eficiência. Sempre que confrontado com perguntas sobre a face escura da Era Vargas, Müller repetia que apenas cumprira ordens. Quem fez da mesma frase um mantra foi Adolf Eichmann, o carrasco alemão sequestrado na Argentina em maio de 1960, julgado no ano seguinte por um tribunal israelense que o condenou à morte e executado em 1962.

“Era assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer; tanto quanto podia ver, seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis”, resumiu Hannah Arendt no extraordinário Eichmann em Jerusalém ─ Um Relato Sobre a Banalidade do Mal. “Ele cumpria o seu dever, como repetiu insistentemente à polícia e à corte; ele não só obedecia ordens, ele também obedecia à lei”. Todas as ditaduras são igualmente repulsivas, mas há um cósmico buraco negro a separar o III Reich e o Estado Novo.

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Nem mesmo David Nasser acreditava que o banco dos réus de Nuremberg só ficaria completo se Müller estivesse lá. Não há semelhanças notáveis entre Filinto e Himmler, um assassino patológico. Mas, se também os prontuários dos dois não podem ser comparados, há visíveis traços comuns ao chefe de polícia de Getúlio e a Adolf Eichmann. Fosse qual fosse a ideologia do regime militar a que servissem, ambos fariam com aplicação e eficácia o serviço determinado pelos superiores hierárquicos.

Depois de duas derrotas na eleição para o governo estadual, Filinto Müller conformou-se com o papel de senador vitalício por Mato Grosso, que acumulou com o comando do PSD regional. Foi líder do governo Juscelino Kubitschek, aliou-se aos militares em março de 1964, conviveu amistosamente com Castello Branco, deu-se bem com Costa e Silva e acabou encontrando em Emilio Médici o presidente que se juntaria a Getúlio no altar dos seus santos particulares. Médici encerrou a orfandade política amargada por Müller desde agosto de 1954.

O líder do governo no Senado tinha 73 anos quando embarcou num avião da Varig, em 1972, e decolou rumo a Paris em companhia da mulher, Consuelo, que esteve a seu lado em todas as viagens feitas depois do casamento, e do neto Pedro, de 16 anos. A poucos minutos do aeroporto de Orly, um incêndio provocou o mais terrível acidente da história da aviação brasileira. A presença de um punhado de celebridades a bordo obrigou Filinto Müller a dividir com outros famosos o espaço jornalístico reservado à tragédia.

Ele não foi o número 1 sequer nas edições que registraram a morte do civil mais influente do governo do general Médici ─ um período ditatorial tão indissociável da tortura e da violência política quanto os tempos do Estado Novo. Müller se foi sem jamais ter admitido que nem todas as ordens devem ser cumpridas.

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