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Por Coluna
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11° mandamento: Não te omitirás

Sabe que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer

Por Deonísio da Silva
Atualizado em 11 nov 2018, 14h20 - Publicado em 11 nov 2018, 11h22

Deonísio da Silva

“Pelo que fizeram se hão de condenar muitos; pelo que não fizeram, todos”, disse o Padre Antônio Vieira, cara a cara com as autoridades que ouviam o famoso Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1650, no qual pronunciou quinze vezes a palavra omissão.

Disse também: “Por culpa de uma omissão, o príncipe está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos”.

A Universidade Estadual Paulista (UNESP), que tem cerca de 50.000 alunos e 3.000 professores, cujos câmpus estão espalhados por todo o Estado de São Paulo, tem usado textos de autores clássicos em seus vestibulares, entre os quais um excerto deste Sermão, utilizado no vestibular de 2016, sobre o qual fez três questões muito pertinentes e bem escritas, isto é, claras, concisas, objetivas e didáticas, destoantes de certos textos do Enem de 2018.

Na primeira, tomando por base o excerto transcrito, de mais ou menos 500 palavras ou 2.642 caracteres, os examinadores perguntaram qual foi o alvo principal da crítica feita por Vieira no conhecido Sermão.

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Sim, se o aluno cursar um bom ensino médio, ele deverá conhecer alguns sermões referenciais do Padre Vieira, e o Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado em Lisboa, na Capela Real, em 1650, é um deles.

Para orientar os vestibulandos a interpretar o texto tomado como referência, foi-lhes perguntado qual tinha sido o alvo principal da crítica de Vieira. Foram apresentadas cinco alternativas, sendo apenas uma delas a correta: a) a falta de religiosidade dos governantes; b) a falta de escrúpulos dos religiosos; c) a preguiça da população; d) a negligência dos governantes; e) a luxúria dos religiosos.

Como se vê, é possível fazer com que o aluno leia, pense e responda corretamente, ainda que tenha lido apenas o trecho apresentado e desconheça o texto completo do célebre Sermão.

Para isso, precisa conhecer o significado das palavras empregadas pelo padre, isto é, o aluno precisa ter um vocabulário razoável. Será que no ensino médio lhe ensinaram vocabulário, sinônimos? Será que lhe ensinaram a consultar dicionários?

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Se ele, por sorte, tiver lido por conta própria alguns rudimentos de origem das palavras, tira de letra a resposta correta, pois negligência quis dizer originalmente não escolher, de acordo com os étimos nec e leg. Este segundo étimo está também em legere, ler, que é colher ou escolher as palavras para entender o texto.

O aluno que acertou a reposta terá lido o texto e respondido que a resposta correta é a “d”. Pois as quatro restantes não aparecem no texto.

Na pergunta seguinte, ele deve responder qual das cinco construções transcritas contém um aparente paradoxo: a) “o mal é que perdem a si e perdem a todos”; (b) “os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores”; c) “desçamos a exemplos mais públicos”; d) “Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros”; e) “A omissão é um pecado que se faz não fazendo”.

Quem acertou a resposta, marcou “e”, pois esta é a única que contém um aparente paradoxo.

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O vestibular de 2017 da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) traz numa das questões um trecho de Iracema, de José de Alencar, seguido de excerto de estudo crítico de Augusto Meyer sobre o autor cearense ─ de atuação decisiva na formação do romance brasileiro, aliás ─ e busca descobrir se o aluno sabe fixar corretamente os parâmetros de interpretação do ensaísta, alicerçados no texto do ficcionista.

A resposta correta é a “c”, porque é a única a deixar bem claro que Iracema não é um romance histórico, uma vez que a narrativa baseia-se num mito. (Para uma aferição exata, ver Guia do Estudante, Vestibular + Enem 2018,  Editora Abril, p. 135).

Outros vestibulares, como os da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do próprio Enem de anos anteriores a 2018 trouxeram questões baseadas em textos de Cruz e Souza, do Dicionário Houaiss, de Moacyr Scliar, de Clarice Lispector e até do Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas, de Renzo Tosi.

Em resumo, há boas indicações de que podemos navegar por mares sempre dantes navegados, fazendo nos exames perguntas sobre os conteúdos pertinentes ao ensino médio, de olhos atentos a textos de qualidade e estáveis na língua, não a modismos que, justamente por estarem em moda, estão saindo de moda, uma vez que a marca principal da moda é ser efêmera.

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Já a língua portuguesa é um sistema estável, tem a idade da universidade ─ quase um milênio ─ e é nossa principal herança cultural. Além do mais, há autores que levaram às fronteiras da expressão escrita suas expressões literárias e eles não podem ser ignorados como se a língua fosse apenas o que se fala. É também o que se fala, mas é também o que se escreve.

Alunos e professores não podem ignorar os programas, as ementas e as respectivas bibliografias. O livro, em formato impresso ou digital, continua a ser a referência solar do ensino.

Sem que o aluno leia, nem sequer um excelente professor obterá êxito no processo do ensino e da aprendizagem mútuos.

• O texto completo deste Sermão ─ há outros com o mesmo nome, mas a Unesp utilizou a versão pregada em 1650 na Capela Real, em Lisboa ─ pode ser lido aqui.

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E o excerto completo transcrito no Vestibular da Unesp é este:

“Sabei, cristãos, sabei, príncipe, sabei, ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes, mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos; pelo que não fizeram, todos.

Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão, perde-se uma maré, por uma maré, perde-se uma viagem, por uma viagem, perde-se uma armada, por uma armada, perde-se um estado. Dai conta a Deus de uma índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão, perde-se um aviso, por um aviso, perde-se uma ocasião, por uma ocasião, perde-se um negócio, por um negócio, perde-se um reino. Dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh! que arriscada salvação! Oh! que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros! Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento, e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão matam de um golpe uma monarquia. A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece, e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo (…)

Mas, por que se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes são os menos maus; os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que esses são os piores: por omissões, por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares, por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, já que assim o querem. O mal é que se perdem a si, e perdem a todos; mas de todos hão de dar conta a Deus. Uma das coisas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão de ser as consciências dos que governam em matérias de momentos. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos, não anda em bom estado: a fazenda pode restituir; a fama, ainda que mal também se restitui; o tempo não tem restituição alguma”.

*Deonísio da Silva
Diretor do Instituto da Palavra & Professor
Titular Visitante da Universidade Estácio de Sá
https://portal.estacio.br/instituto-da-palavra

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