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Por Filipe Vilicic
Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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Por que o que Cocielo falou de Mbappé foi racista (e sobre fazer “mimimi”)

Uma explicação científica para o preconceito do youtuber Júlio Cocielo (figura carismática, aliás); além da falta de noção do termo “mimimi”

Por Filipe Vilicic Atualizado em 5 jul 2018, 19h00 - Publicado em 5 jul 2018, 14h10

Tô de férias. Também estou acostumado a como levantar debates acaba por atrair comentários de figuras raivosas e por levar à revolta aqueles que se veem refletidos em determinado texto. Mais que isso, aprendi a ignorar os ignorantes nos assuntos específicos – e não se sinta ofendido pelo “ignorante” (como os da era de Platão, considero todos como tais, incluindo-me; mas tenho noção do que conheço, e do que não). Por fim, sei bem que muitos daqueles que saem babando como cachorros com raiva por aí nem leem um texto antes de comentá-lo – tanto que, na história que se seguirá, diversos começavam alegando que eu não conheceria o protagonista do caso (sendo que em meu texto, logo no início, ressaltei os dias em que passei com o mesmo, o perfil feito da figura e como ele deve ser personagem de um livro vindouro; aliás, Cocielo é carismático e simpático). Isso tudo para explicar que normalmente não retrucaria esse tipo de “leitor” – aspas intencionais, é claro.

Todavia, tem momentos nos quais o nervo salta demais, falando mais alto. É este o caso.

Neste blog, abordei uma polêmica do momento. Para saber mais, clique no link da frase anterior. Aqui, vou resumir: o youtuber Júlio Cocielo (16 milhões de inscritos em seu Canal Canalha) foi chamado de racista (e perdeu patrocínios, viu sua reputação arranhada etc.) pelo tuíte “mbappé conseguiria fazer uns arrastão top na praia hein”. Mbappé, craque da seleção da França, é negro.

Soube da polêmica da semana por meio de uma manifestação de revolta de um colega de profissão, negro, no Instagram. Depois, notei que amigos e amigas, tanto negros, quanto progressistas (em especial, homossexuais e mulheres dentre a maioria), queixavam-se do mesmo. E só observei representantes da somatória homens, brancos e heterossexuais reclamarem que se trataria de mimimi.

Um cenário assim já bastaria para enquadrar a afirmação de Cocielo como racista. Afinal, todos os representantes dos alvos dos dizeres se julgaram agredidos pelo o que são, em relação à cor da pele dos mesmos (e não vi nenhum desses falar o contrário disso). Mas é preciso tomar cuidado ao tratar do tema. Então, darei uma justificativa de base científica, também.

É famosíssimo um método de estudo utilizado para identificar o racismo interno (ou o machismo; ou a homofobia) das pessoas. Nele, pegam-se imagens de pessoas em situações diversas, como na rua, vestindo terno e gravata, limpando a casa ou correndo num local público.

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O pulo do gato científico está no seguinte: essas fotos (poderiam ser vídeos curtos, também, ou gifs) são mostradas a várias pessoas, que dizem o que acham das mesmas. Isso em duas situações: numa, o personagem principal é um homem branco; noutra, troca-se apenas o indivíduo no retrato, substituindo-o por um negro (todo o restante permanece igual – as roupas, o cenário, a ação, tudo). Há versões do mesmo teste no qual se troca o personagem por uma mulher, por exemplo. Mas aqui vamos nos ater à substituição do branco pelo negro.

Ocorre que, por ampla maioria, quem via essas imagens reagia de forma completamente distinta ao se alternar a cor da pele com a qual se deparavam. Por exemplo, no caso de um homem branco de terno e gravata, era comum opinarem que provavelmente aquele era um executivo, indo para o trabalho, algo assim. Se fosse um negro… diziam que era um segurança, um motorista. Pegou a conclusão? Ainda não?

E no caso da imagem de um homem correndo? Quando branco, o usual era ouvir uma afirmação na linha “tá atrasado pra uma reunião de trabalho”. E se fosse negro? “Tá correndo da polícia; fez alguma besteira; e por aí vai”. Sim, essas eram as afirmações ouvidas sobre aquela mesmíssima foto, na qual o único elemento variante era o da etnia do protagonista.

Trata-se, como destaquei, de um já clássico da ciência. A pesquisa têm o mérito de constatar a existência, além do mal decorrente, do racismo impregnado na sociedade, como uma doença (quase) invisível que extrapola seus males óbvios.

Pois Cocielo se encaixou justamente nesse clássico exemplo científico. Por isso que o que ele disse foi, sim, racista. Só numa narrativa de Buñuel se imaginaria o mesmo Cocielo tecendo comentário similar, com o “arrastão top na praia”, se a cena fosse de um jogador branco, loiro, correndo. Sacou?

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A mesma lógica justificaria, por exemplo, por que o que seu colega Felipe Neto falou há pouco tempo sobre o bombástico clipe de Childish Gambino não foi racista. Nem um pouco. Quer saber, informe-se sobre esse caso. Mas resumo com a conclusão: nessa outra história, em nenhum momento se usou da condição própria do outro para humilhá-lo; Felipe Neto só fazia uma crítica ao YouTube (e nada tinha a ver nem com o Donald Glover, o “Gambino”, ou com seu clipe).

Não foi o caso de Cocielo. Ele cometeu um ato racista, similar aos embutidos em tuítes anteriores dele.

Mas ele também poderia progredir, é claro. Rever os próprios atos é amadurecer. A aceitação do racismo (assim como da misoginia ou da homofobia) disfarçado de tentativas de piada está há tempo demais permeada na sociedade, esta igualmente racista. E todos, todos, cometemos erros ao longo da vida. O que vale, ainda mais para uma celebridade da linha de Cocielo, seria evoluir a partir deles.

Tá aí outro elemento que ele poderia aprender com Felipe Neto. Esse progrediu. E muito. Já assumiu falhas do passado, coloca-se como um sujeito a erros (como todo humano), e toma cuidado com os alvos de suas poderosas falas. Tudo o que ele não media muito bem há uns 8 anos. Contudo, progrediu. Aliás, virou um progressista.

E antes que me venham novamente com o velho “separar a arte do artista”, volto a destacar: não é a discussão em torno de Cocielo. Lá não tem arte, nem artista (e, sim, há youtubers-artistas). Mas, sim, um famoso que se sustenta não de um ofício no qual é exemplar, mas com a própria fama, com o “ser ele mesmo”, com sua reputação, moral e traços de humanidade (em versões exibidas ao público).

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Sou fã da boa comédia politicamente incorreta. Escrevi aqui sobre Ricky Gervais, que delimitou bem o que seria “politicamente incorreto”, diferentemente de ataques puramente racistas ou misóginos, em seu espetáculo Humanidade (tá no Netflix). E o que Cocielo fez não foi humor politicamente incorreto.

Noto que todos aqueles que se queixaram em meus perfis públicos, nas redes sociais de VEJA etc., dizendo que era “só uma piadinha” ou que “não teve racismo” eram, não por acaso, homens e brancos. Quem curtiu, elogiou e tal? Em especial, negros, mulheres e homossexuais (que se declaram assim). Possível concluir algo disso, não?

****

E agora falemos do termo “mimimi”. É um daqueles frutos mais horrendos de uma sociedade racista, misógina, homofóbica e hipócrita. Usado como forma de diminuir o discurso de minorias, por meio da tentativa de provocação e humilhação pública. Porém, mesmo considerando esses fatores provenientes do ódio, o odioso termo jamais poderia ser aplicado a mim. Explico.

Quando entro em assuntos como o em torno de Cocielo, é, como diriam na época de Nelson Rodrigues, batata: os que se sentem incomodados, pelo texto ter servido de espelho, dizem que se fez “mimimi”. O porém: sou homem, branco, heterossexual e estou numa posição de poder. Nasci privilegiado. Não tenho do que fazer “mimimi”.

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Jamais fui maltratado por minha cor, etnia, classe social ou orientação sexual. Quando estou em uma reunião, ou em qualquer lugar da vida, é comum que baixem a voz, naturalmente, para falar comigo. Sou facilmente atendido em qualquer lugar, seja um restaurante ou uma balada. Não atravessam a rua ao ver; pelo contrário, é comum que me abordem, por vezes só para perguntar um “tá tudo bem?”. E são incontáveis as vezes em que ouço coisas do tipo: “como você tem cara de rico” ou “nossa, que sorte você ter nascido com um cabelo assim”.

Em paralelo, amigos negros, mulheres e homossexuais relatam com frequência como se sentem incomodados ao entrar em uma sala de reuniões e notar que nela só há homens, brancos, heterossexuais. Mais que incomodados, alguns e algumas declaram sentir medo.

Certa vez fui parado pela PM junto a um amigo negro – quiseram revistá-lo, não a mim. Enquanto isso, nas três vezes em que tive de fazer B.O. em delegacias, as autoridades quiseram agilizar, me passar na frente da fila, cuidar do meu caso com rigor, e me trataram sempre por “senhor”. Em todas as vezes tive de pedir, educadamente, para que atendessem antes os que estavam à frente na fila (mulheres, negros, pobres, nas situações pelas quais passei), e que eu esperaria.

Jamais senti o preconceito na pele. Nasci como privilegiado. Seria um cidadão grego na Grécia de antigamente. Frequentei as melhores escolas, tive acesso amplo à cultura e tudo mais. Por isso sou seguro, confiante, liberto, sem medo da vida.

Logo, caro leitor, dizerem que eu faço “mimimi”, até pela abordagem preconceituosa do termo, não cabe. O que faço, em textos como o que escrevi do racismo de Cocielo, é uma autocrítica, uma autodepreciação da classe, etnia e gênero ao qual pertenço. Sigo o que recomendou a poderosa Hannah Gadsby em seu Nanette (no Netflix): arregacei as mangas e resolvi aproveitar os privilégios de minha posição para fazer algo que preste.

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Concluo destacando que este é o momento ideal para questionarmos e provocarmos os homens, brancos e héteros (como eu), no poder. As redes sociais permitiram isso. Um dos lados positivos da internet é a forma como ela concedeu voz às vítimas desses homens, brancos e héteros no poder. Aproveitemos. Pois é da ciência e da tecnologia que surgem os grandes progressos humanos – inclusive os dos campos morais e éticos.

Em tempo: proponho também que reflita se é saudável essa onda do mundo conectado de tentar valorizar mais o que alguém fala pela quantidade de crianças e adolescentes que seguem esse alguém (muitas vezes, bots, não pessoas de fato) em uma rede social qualquer, do que pela análise, de fato, do conteúdo propagado. Isso acaba bem?

 

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