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Por Filipe Vilicic
Crônicas do mundo tecnológico e ultraconectado de hoje. Por Filipe Vilicic, autor de 'O Clube dos Youtubers' e de 'O Clique de 1 Bilhão de Dólares'.
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O que quis Lula ao citar o Uber (e a uberização) em seu discurso?

Na fala, o petista indica que está atualizado em relação a um problema contemporâneo. Mas resta uma dúvida: qual é o caminho que ele sugere como solução?

Por Filipe Vilicic 11 nov 2019, 19h00

“O povo tá passando fome, o povo tá desempregado, o povo não tem mais trabalho de carteira assinada, o povo tá trabalhando de Uber, o povo tá trabalhando de bicicleta pra entregar pizza”. Em seu discurso após a soltura, na sexta-feira (8), Lula endereçou a já tão discutida uberização do mundo. Deu sinais de que talvez tenha assistido à série Years and Years (HBO). Será que foi acertada a crítica do petista ao Uber? A resposta é intrincada.

Em 2015, frente a cenário já completamente distinto do atual, VEJA publicou reportagem que assinalava: “Países mais corruptos, mais burocratizados e com maior interferência do Estado tendem a resistir a inovações como o aplicativo de caronas pagas”. As estatísticas (exibidas nos infográficos presentes na versão impressa da mesma pauta) então indicavam que o aplicativo Uber sofria punições maiores em nações com elevados índices de corrupção, travas burocráticas, nas quais a mão do Estado era elevada, a exemplo de Brasil, Índia e China. O contrário também era verdade, como demonstrava o cenário na Nova Zelândia e no Japão.

Há quase cinco anos, o serviço Uber era sinônimo de qualidade, quase um luxo, com água mineral, balinhas e Corollas pretos servindo os passageiros. Consolidou uma forma prática, eficiente e barata de fornecer transporte em cidades. Indo além, ser motorista de Uber virou alternativa a desempregados, ou àqueles em subempregos, em especial em países como os EUA – que renascia da crise financeira iniciada nos anos de 2007 e 2008 –, México e Brasil.

Em outra faceta, a Uber, aí a empresa, desafiava monopólios – em algumas situações, de cunho mafioso – de sindicatos, de taxistas, motoristas particulares e afins. No Brasil, atacava diretamente a indústria – burocrática, intrincada e suja – dos alvarás. Nos EUA, acabava com a necessidade dos caríssimos medalhões de táxis nova-iorquinos.

Em todos esses aspectos, trouxe vantagens. Num bom resumo, como postou o inglês Paul Graham, icônico empreendedor da indústria digital: “O Uber é tão obviamente uma coisa boa que é possível medir quão corruptas são as cidades pela intensidade com que tentam suprimi-lo”.

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Desde então, o mundo se transformou e ocorreu a uberização. O modelo de negócios da Uber, que promovia o trabalho informal como um bico, ou como substituto provisório para quem não achava trabalho melhor, se fortificou e virou, digamos assim, um emprego de fato. Mas isso não só para motoristas. Foram “uberizados” os corretores de imóveis, entregadores de tudo e qualquer coisa, passeadores de cachorros e tantos e tantos outros. Entramos na era de Rappi e Airbnb.

Nesse novo momento, a uberização se transformou também em sinônimo de precarização. Years and Years, aquela série de TV que talvez Lula tenha visto no período em que estava na cadeia, traduz bem isso. Na história, um dos personagens, pai de família, antes bem-sucedido financeiramente, vira entregador no modelo Rappi, de bicicleta, após perder seu emprego e suas economias guardadas no banco. Não só ele. O efeito da uberização atinge em cheio a classe média da Inglaterra de Years and Years.

A cena toda é extremamente realista. Parece tirada de um planeta como este deve ser em uns cinco anos, por aí. As consequências negativas são assim resumidas pela personagem Muriel Deadon, matriarca da família, mãe do executivo que virou entregador “de Rappi”: “É tudo nossa culpa (… ) Começou no supermercado. Quando trocaram as mulheres nos caixas por caixas automáticos. Ninguém fez nada. Agora todas essas mulheres se foram (perderam seus empregos). Nós deixamos isso acontecer. E gostamos disso. Queremos isso. Para não ter mais de olhar nos olhos dessas mulheres (…) É nossa culpa. Esse é o mundo que nós construímos”.

Na narrativa, os caixas automáticos representam a uberização. Uberização, esta, que trocou: taxistas com alvarás por motoristas informais; motoboys por Rappi; hotéis por Airbnb; e aos poucos acaba com outros trabalhos formais, em favor da agilidade e praticidade de aplicativos. Pelos aspectos tratados no início deste texto, isso tudo tem um lado proveitoso. Contudo, agora a sociedade começa a ter de debater as consequências negativas.

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São várias as críticas possíveis. Por exemplo, o serviço não tem se mostrado mais tão luxuoso, muito menos 100% seguro – pipocam as notícias de assédio sexual dentro de automóveis Uber; de assaltos a motoristas; e uma vez chegou para mim um táxi (?!?!?), com outra placa, e outro motorista, quando pedi um Uber (na categoria Vip). Aliás, sobre esse último caso: quando questionei o motorista, ele respondeu “É normal. Muitos (motoristas e taxistas) estão fazendo isso”.

Entretanto, o ataque de Lula não era direcionado à qualidade decrescente dos negócios da uberização. Lula falava mais como a Muriel Deadon de Years and Years.

Não existe uma culpa direta da Uber, a companhia, nessa história. Indireta, talvez, provavelmente sim. Quando países ocidentais entraram em crise nos últimos anos – e vários deles entraram em crise, como Brasil, Chile, Bolívia, Inglaterra, Portugal, Espanha, Itália, dentre outros –, a opção da uberização caiu como uma luva para desempregados que precisavam sustentar uma vida minimamente digna.

Por outro lado, houve outra consequência. A uberização se espalhou por setores em demasia (exemplos: o imobiliário; o hoteleiro; o de serviços de entrega; dentre vários, e diversos ainda vão se somar), jogando muitos e muitos profissionais para a informalidade. Estes perderam direitos, garantias, uma mínima estabilidade. O que gerou protestos e forçou a revisão de leis – no extremo, em alguns países, a exemplo da Inglaterra, os motoristas passaram a ser legalmente considerados funcionários da Uber.

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Isso é só o começo. Visionários da indústria digital, incluindo aí Mark Zuckerberg, Bill Gates e Jeff Bezos, preveem um caos social gravíssimo. Isso porque se estima que esses trabalhos informais logo dispensarão qualquer presença humana.

Em outras palavras, motoristas de Uber serão trocados por carros autônomos. Ciclistas do Rappi, por drones. Corretores de imóveis, por sites que calculam tudo com algoritmos. Vários advogados e engenheiros, por softwares de inteligência artificial que conseguem executar as mesmas tarefas, de forma mais barata e eficiente.

Nesse futuro, previsto por tantos empreendedores, haverá uma massa de desempregados que não mais se acharão com função na sociedade. Afinal, tudo aquilo que aprenderam a fazer pode passar a ser realizado por robôs. Alguns devem pensar que grandes empresários, que vão economizar em custos de mão-de-obra, pulam de felicidade. Não é bem assim.

Zuckerberg (e os seus) bem sabe que essa massa de desempregados também representará um crescente contingente de pessoas sem poder aquisitivo. A inteligência artificial (IA) dirige um automóvel, ou um caminhão (sim, caminhoneiros também serão uberizados), bem melhor, com maior segurança, do que motoristas de carne e osso. Porém, sabe o que essa mesma IA não faz? Ela não consome – não precisa comprar comida, roupas, pagar o aluguel.

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Portanto, a produção pode aumentar com o advento dos robôs. Mas quem consumirá tudo que será produzido?

Como resolver esse problema? Destaco a solução indicada por Elon Musk (o de PayPal, Tesla, SpaceX, dentre outras empreitadas desta era): “Há uma chance enorme de que faremos uma renda básica universal, ou algo assim, devido a essa automatização. Não tenho ideia de outra alternativa”.

Musk não está sozinho nessa visão. Pelo contrário, juntaram-se a eles a maioria de seus colegas bilionários da indústria da inovação. Alguns deles: Zuckerberg, Andrew Yang, Stewart Butterfield, Sam Altman, Jack Dorsey, Chris Hughes… talvez você só conheça um nome ou outro, mas simplifico dizendo que todos são bilionários cujas fortunas são provenientes justamente da venda de tecnologias que levam à potencial crise que está se formando. Afirmou, por exemplo, Richard Branson, da Virgin: “Muitas inovações excitantes são criadas, o que gera muitas oportunidades e muita riqueza, mas com o perigo real de reduzir o total de empregos. O que torna importante experimentar ideias como a da renda básica universal”.

De onde se tiraria dinheiro para garantir um salário mínimo, para uma vida minimamente digna, aos indivíduos afetados pela uberização? A grande maioria desses mesmos bilionários sugerem que se mexa no bolso deles próprios. Isso mesmo. Querem, eles próprios, contribuir, pagando (por meio de impostos, por exemplo) pela iniciativa.

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Todavia, aí se desenha também uma armadilha. E é nesse ponto que seria preciso compreender melhor o que quer Lula ao ter como alvo a uberização. Caso ele siga seu colega Eduardo Suplicy, outro que defende a renda básica universal, é um caminho. Só que não se pode simplesmente dar o peixe. Principalmente nesse caso.

A sugestão dos visionários da indústria digital, nesse sentido, é, sim, garantir a renda mínima familiar. No entanto, em paralelo, propõem revoluções em setores como saúde, infraestrutura e, em especial, na educação. Espera-se, nesse último aspecto, proporcionar um ensino voltado a capacitar os jovens do futuro a trabalhar em áreas mais imunes à IA. Como as que exigem habilidades de criatividade, comunicação, liderança, empatia, dentre outras das características humanas, demasiado humanas.

À primeira vista pode parecer irônico que aquelas mesmas figuras que criaram as tecnologias que levaram ao problema agora surjam com soluções. Mas é um engano notar assim. Por um motivo simples: assim sempre foi.

Por exemplo, há séculos, ao longo da principal das revoluções industriais, foram os nomes por trás das fábricas nascentes que, diante da justa (e enorme) pressão de seus operários, também forçaram a criação de legislações que garantissem medidas como as de condições básicas de trabalho, ou do salário mínimo. Como os operários do passado, talvez agora a pressão venha dos funcionários informais da uberização, para exigir que os bilionários de hoje… calma aí, indica-se que os magnatas atuais desta vez se anteciparam, e já correm atrás de respostas, antes que sejam forçados a isso.

A este texto, porém, ainda restou uma dúvida. Após citar o real problema da uberização, qual solução Lula espera oferecer? Ou, melhor, para qual caminho ele quer guiar seus seguidores, nesse aspecto?

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