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O papel decisivo dos povos indígenas na preservação da Amazônia

As comunidades prometem ganhar destaque nos debates da COP-26, principalmente no que diz respeito ao Brasil

Por Nathan Fernandes 22 out 2021, 06h00

Radicados há mais de 500 anos nos territórios do Espírito Santo e do leste de Minas Gerais, os índios krenak costumam dizer que o apocalipse, para eles, aconteceu em 2015. Em novembro daquele ano ocorreu o rompimento da Barragem de Fundão — um dos maiores desastres ambientais já vistos no país e que sufocou o Rio Doce de lama até a sua morte. “O rio, que nós chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar”, explica o líder indígena Ailton Krenak. “O Watu, esse rio que sustentou a nossa vida até agora, foi coberto por um material tóxico, o que nos deixou órfãos e nos colocou na real condição de um mundo que acabou”, diz ele. A interpretação dos krenak para o rompimento da barragem é reveladora da dimensão que os recursos naturais têm para os indígenas — algo intrínseco à própria existência, que garante as condições de vida e cuja perda tem tons irreparáveis.

Visões de mundo como as dos krenak ajudam a entender os dados publicados em agosto pelo MapBiomas, plataforma de mapas e dados de cobertura e uso do solo no país. Segundo o levantamento, nos últimos 35 anos as reservas indígenas, mesmo com o crescimento de sua população, perderam 1,6% de sua cobertura vegetal para o desmatamento. Em paralelo, as áreas privadas apresentaram 68% de perda de vegetação nativa entre 1985 e 2020. As informações revelam ainda que houve um crescimento acentuado da área destinada à agropecuária em todos os biomas do país — menos na Mata Atlântica, que já é o mais devastado. A prática ganhou 81,2 milhões de hectares desde 1985, representando um aumento de 44% na área ocupada. Os dados têm levado os cientistas e ambientalistas a prestar atenção em um fenômeno pouco estudado: o papel das comunidades indígenas na preservação da cobertura florestal no Brasil. “Esses povos protegem as florestas de uma forma muito mais efetiva do que o próprio Estado. Além disso, prestam um serviço de valor incalculável ao garantir a manutenção das chuvas e dos ciclos de água nos arredores das reservas, o que é imprescindível para a economia”, avalia Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas. Um amplo estudo realizado por pesquisadores americanos demonstra que, mesmo do ponto de vista histórico, a ocupação indígena sempre provocou poucos danos, até nas regiões que concentravam as maiores populações. A pesquisa coordenada pela arqueóloga Dolores Piperno, do Smithsonian Tropical Research Institute, constatou que, por mais de 5 000 anos, os nativos da região da Amazônia viveram no bioma sem causar degradações detectáveis. Realizado entre populações nativas do leste do Peru, o estudo não encontrou evidências de segmentos “desmatados, cultivados ou de outra forma significativamente alterados na pré-­história”. Segundo os cientistas, fenômenos como queimadas e desmatamentos surgiram da chegada dos colonizadores europeus. Em um outro levantamento realizado por cientistas dos Estados Unidos, avaliou-se o potencial das comunidades indígenas apoiarem o combate ao desmatamento irregular em suas regiões. A pesquisa, publicada na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), mediu a efetividade do uso de ferramentas tecnológicas no patrulhamento ambiental feito pelas próprias comunidades de uma região da Amazônia peruana. Munidas de smartphones com algoritmos que detectavam desmatamentos ilegais, as comunidades indígenas que participaram do estudo conseguiram reduzir em 52% a perda de cobertura de árvores por atividades clandestinas provocadas por invasores em seus territórios, em comparação com as comunidades que não participaram do projeto. Ambos os estudos sugerem que os planos futuros de conservação da Amazônia têm nos indígenas importantes aliados.

PRESERVAÇÃO - Aldeia às margens do Rio Iriri, no Pará: impacto mínimo na natureza -
PRESERVAÇÃO - Aldeia às margens do Rio Iriri, no Pará: impacto mínimo na natureza – (Mauro Pimentel/AFP)

O papel dos indígenas na preservação ambiental começa a ser avaliado com mais precisão justamente no momento em que no Brasil se discutem medidas legais controversas, como o PL 490, de 2007, que propõe alterações nas regras de demarcação das reservas. Entre os pontos mais polêmicos da medida, encontra-se a tese do“marco temporal”, que prevê que só poderão ser consideradas terras indígenas as que já estavam em posse desses povos na data da promulgação da Constituição de 1988. A discussão no Supremo Tribunal Federal provocou grandes protestos de indígenas em Brasília no início de setembro e acabou adiada por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

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PROTESTO - Indígenas reunidos à frente do STF em Brasília: reação contra o marco temporal das reservas -
PROTESTO – Indígenas reunidos à frente do STF em Brasília: reação contra o marco temporal das reservas – (Joédson Alves/EFE)

O papel das comunidades indígenas na preservação ambiental promete ganhar destaque nos debates da COP-26, em Glasgow, principalmente no que diz respeito ao Brasil. “Temos, atualmente, um governo ativamente responsável pela destruição do meio ambiente, através de sua política de ‘passar a boiada’. É o momento de alterar esse cenário, e isso passa por novos modelos de desenvolvimento que respeitem os direitos humanos e reconheçam os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas”, avalia o advogado e doutor em antropologia social Luiz Eloy Terena, membro da etnia terena e coordenador do Departamento Jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Apenas o esforço conjunto é capaz de impedir que outros povos experimentem situações traumáticas como as vividas pelos krenak às margens do Rio Doce.

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