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Chaga nacional

Em detrimento dos mais pobres, o Estado brasileiro cultiva a concentração de renda, que dificulta o que o capitalismo tem de melhor: a competição criadora

Por José Roberto Afonso* e Marcelo Medeiros **
Atualizado em 21 set 2018, 07h00 - Publicado em 21 set 2018, 07h00

O Brasil é extremamente desigual. Perto de um quarto de toda a renda do país é recebido pelo 1% mais rico da população. A concentração do patrimônio é ainda maior, apontam estudos recentes feitos pelo Ipea. As evidências das diferenças não param aí: homens ganham mais que mulheres, brancos mais que negros, o Sudeste é mais vantajoso que outras regiões…

Não se trata apenas de um problema de justiça: a desigualdade eleva os custos e os riscos para a economia. Dinheiro é poder — e riqueza demais significa uma capacidade desproporcional de influenciar a política. A concentração extrema também facilita monopólios e dificulta aquilo que o capitalismo tem de melhor: a competição criadora. Em um ambiente assim, é mais fácil capturar o Estado para obter benefícios particulares. A desigualdade alta atrapalha o desenvolvimento do país.

A história mostra que não é simplesmente o nível de crescimento, de abertura da economia ou de intervenção do Estado que determina o comportamento da desigualdade. É a forma desses processos que faz o país ser mais ou menos desigual. A concentração de renda e de riqueza é resultado de escolhas feitas no passado e no presente, que afetarão várias gerações no futuro. Ela, que já era muito alta no Brasil rural de 1920, subiu ainda mais até o fim da ditadura Vargas. Depois disso, caiu sistematicamente até 1964, em uma das fases de maior crescimento da economia brasileira. A situação mudou de novo com o golpe militar. Na ditadura, durante os quatro anos de estagnação que antecederam o crescimento acelerado a partir de 1968, a desigualdade disparou e continuou subindo para os maiores níveis da história brasileira até a restauração da democracia. A partir daí surgiram os primeiros sinais de queda, que nos dados tributários e nas pesquisas de mercado de trabalho ficaram mais evidentes depois da década de 90. Nos anos 2000, a concentração no mercado de trabalho diminuiu, mas no fim daquela década foi contraposta por um aumento do peso do capital na desigualdade. Nos últimos dois anos, os sinais não são claros, porém, ao que parece, a desigualdade pode estar aumentando novamente.

“Não se pode continuar a prometer proteção a quem tem pouco enquanto se oferecem privilégios a quem tem mais”

Não é fácil tornar um país tão desigual. É preciso combinar uma série de fatores para produzir isso. A desigualdade não tem causa única e, por esse motivo, não terá solução simples. Melhorias educacionais, reformas tributárias, políticas regionais, redução da discriminação — nenhuma dessas medidas isoladamente será capaz de trazer o Brasil a níveis aceitáveis de desigualdade em um prazo razoável.

Sempre há alguma controvérsia sobre o que fazer. No entanto, existem coisas que precisam mudar. Uma parte nada desprezível da desigualdade brasileira é resultado de privilégios, vantagens que são concedidas a quem é mais rico e que não chegam à massa da população. Esses privilégios nem sempre são óbvios e seus efeitos exatos são difíceis de medir.

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A forma de cobrar tributos no Brasil é um caso notório de como as políticas públicas não apenas deixam de corrigir mas ainda agravam a desigualdade. Do total da carga tributária, 40% provêm diretamente de incidência sobre mercadorias e serviços. Essa proporção chega quase à metade se levarmos em conta que ela é a base de parcela de outros tributos. É muito mais fácil tributar uma venda do que lucros ou propriedades; do mesmo modo, é também menos transparente — não se sabe quanto de imposto há embutido no que se compra; contudo, isso se torna evidente quando o valor vem descontado no contracheque ou é preciso ser recolhido em uma guia. O fácil e o opaco são um atalho para a tributação perversa.

Ao tributar pesadamente o consumo, atinge-se quem mais gasta, em termos proporcionais: os 10% mais pobres da população consomem 25% a mais que sua renda familiar, enquanto os 10% mais ricos só gastam 55% do que ganham. Logo, depois de simulado quanto se paga direta e indiretamente de impostos, a carga daqueles que menos ganham é de 53% de sua renda familiar, contra 23% dos que têm maior renda. Dessa forma, diferentemente da maioria das economias avançadas, o Brasil fica mais desigual depois de cobrar impostos. Quando governos devolvem os recursos à sociedade na forma de gastos públicos, poderiam tentar compensar a distorção tributária. Simulações revelam que a maior contribuição estatal redistributiva se dá na educação e na saúde; entretanto, tais gastos vêm perdendo cada vez mais espaço para a previdência social (tais benefícios do regime geral explicam 8% da renda dos 20% mais pobres do país, contra 19% dos 20% mais ricos — isso se agrava ainda mais se contados os regimes dos servidores). Da mesma maneira, se computados também as isenções, os subsídios e os juros da dívida, a estrutura de gastos públicos no Brasil funciona como uma espécie de Robin Hood ao revés.

ELEVADOR SOCIAL – Acrílica sobre madeira, 1966, 138 cm x 125 cm (Instituto Rubens Gerchman/VEJA)

A ideia de que reformas fatalmente prejudicariam os mais pobres é mais uma faceta da desigualdade no acesso ao conhecimento, em particular de como instituições e políticas públicas no país não privilegiam os menos favorecidos. O caminho de reformas é inexorável; todavia, a depender do que se faça ou não nos próximos anos, corremos o risco de tornar nossos sistemas, do tributário ao previdenciário, ainda mais desiguais para as próximas gerações. Continuar a tributar pesadamente mercadorias enquanto se cobra mal de serviços e direitos de imagem, beneficia os de maior poder aquisitivo, que mais e melhor acessam a economia moderna. É o caso de endurecer o acesso à previdência social para quem é pobre, com mulheres sem empregos estáveis, ao mesmo tempo em que se diferenciam regras de idade para favorecer certas categorias especiais de servidores públicos, como militares e policiais civis, sem fazer com que paguem mais ou ganhem menos em decorrência das vantagens que vão receber, como ocorre em outros países? Somem-se a isso o Sistema Único de Saúde sucateado e sobrecarregado, o pouco acesso dos mais pobres ao ensino médio e superior, a assistência social tímida, que não se expande nos momentos de crise, e os pilares de um país desigual estão formados.

Nenhum desses problemas tem solução trivial, e dificilmente isso pode ser mudado de forma rápida. Mas não há como negar que uma parte importante de nossa desigualdade é resultado de decisões políticas. Não se pode continuar a prometer proteção a quem tem pouco enquanto se oferecem efetivamente privilégios a quem tem mais. Pior que nascer pobre é saber que a ação do governo ao longo de sua vida não o tira da pobreza e ainda o torna cada vez mais distante dos mais bem-nascidos. O Estado brasileiro com uma das mãos afaga os pobres, porém com a outra acaricia os ricos — e isso torna o Brasil cada vez mais desigual.

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* José Roberto Afonso é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV e professor do  Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)

** Marcelo Medeiros é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Universidade de Brasília (UnB)

Leia mais: A DESIGUALDADE

Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601

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