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#34 A FELICIDADE: A obrigação de sorrir

Como a imposição de ser feliz a todo custo ajudou a formar uma sociedade cada vez mais individualista e propensa à depressão

Por Ana Claudia Fonseca e Rinaldo Gama
Atualizado em 21 set 2018, 07h00 - Publicado em 21 set 2018, 07h00
ALEGRIA, ALEGRIA – O Festival de Woodstock, realizado nos Estados Unidos, em 1969: “paz e amor” virou um tipo de dever (Tom Miner/The Image Works/Top Foto/Keystone Brasil/.)

Quando perguntaram a Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), já idoso, se tivera uma vida feliz, o escritor alemão respondeu que sim, mas disse não se lembrar de uma única semana em que o houvesse sido. Nada menos faustoso. Nem mais preciso: a máxima traduz de forma irretocável a natureza fugidia da felicidade. É algo que ninguém deixa de reconhecer, e no entanto não se consegue explicar de modo definitivo. O tormento coincide com os primeiros sismos da filosofia. Na Grécia antiga, o ser feliz estava ligado à procura do bem supremo e da virtude. Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) via a felicidade como “a atividade da alma dirigida pela liberdade”. Nada mais moderno, sobretudo quando se considera que Sigmund Freud (1856-1939) vinculava a felicidade à liberdade. Como Jean-Paul Sartre (1905-1980) acreditava que o homem está “condenado” a ser livre, a felicidade seria uma sentença?

Se a resposta é “sim’”, então a felicidade é uma bela condenação. Uma rápida pesquisa em livrarias penduradas na internet revela mais de 60 000 títulos que apregoam a melhor maneira de alcançar aquele, digamos, estado de satisfação plena. Um curso sobre como ser feliz inaugurado em 2017 na Universidade Yale, nos Estados Unidos, bateu o recorde em matrículas nos 316 anos da prestigiosa instituição — e acabou servindo de inspiração para uma idêntica disciplina oferecida agora na Universidade de Brasília (UnB). “De todas as emoções humanas, a felicidade é a mais difícil de definir”, disse a VEJA o filósofo francês Pascal Bruckner. “É algo que muda de acordo com a pessoa, a época e a idade. Ela pode ser encontrada em alguns momentos, contudo não vem quando a chamamos — e chega quando menos se espera”.

Em seu livro A Euforia Perpétua (2000), Bruckner detalha como a obsessão por essa quase miragem se impôs com características de um pesado fardo sobre os ombros ocidentais a partir da segunda metade do século XX. A busca pela felicidade, considerada pelos iluministas uma prerrogativa de todo ser humano, passaria a ser, sob o incentivo dos movimentos de contracultura da década de 60, um ideal coletivo e obrigatório. Em outras palavras: o que era um direito se tornou quase um dever. Bruckner localiza isso no lendário Festival de Woodstock, que se realizou entre 15 e 18 de agosto de 1969, nos Estados Unidos.

O fenômeno encontraria sua justificativa em duas grandes mudanças. A primeira se deu no âmbito do capitalismo: já não bastava trabalhar; era preciso consumir. E fomos todos às compras. Quando mostramos a maior casa, o carro mais novo, a roupa de marca, somos reconhecidos pelo outro como vitoriosos. E, nesse reconhecimento, nós nos sentimos bem. Entretanto, trata-se de uma sensação efêmera, porque sempre se quer mais, o que gera enorme ansiedade. “O ser feliz inclui momentos de frustração, de inquietação, de angústia, de busca que não é atendida”, comenta o economista Eduardo Giannetti, autor de Felicidade (2002). “Vivemos, porém, uma época em que todos os desejos têm a expectativa de ser imediatamente satisfeitos. Se não o são, temos a impressão de que estamos perdendo algo”, acrescenta.

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A segunda mudança foi o impulso do individualismo, alimentado pelo enfraquecimento da ideia de uma moral generalizada, como já havia detectado o existencialismo, e pela ampliação do sentimento de descrença em algum tipo de vida após a morte. A partir do momento que a moral ganha ares de escolhas particulares e a sorte de cada um não é mais uma questão da providência divina, é preciso tomar as rédeas do próprio destino. Se o indivíduo não é feliz, só tem a si mesmo para culpar. Começa-se então a enxergar a felicidade como o objetivo final da vida, e não como um momento alegre na existência. Assim, quem não se considera feliz passa a se sentir simplesmente como alguém excluído da sociedade.

Para Goethe, ser feliz não significava uma vida sem dificuldades, e sim ter conseguido superá-las. Essa noção perdeu vigor no último meio século. Hoje, a menor contrariedade atinge os indivíduos como uma afronta. “As pessoas se sentem infelizes por não ser felizes. Não percebem que estar bem o tempo todo pode ser uma maldição”, atesta Bruckner. “O ser humano funciona na falta. Quando nos sentimos incompletos, sonhamos e criamos mais”, afirma o psicanalista Jorge Forbes. A busca é, portanto, o motor da felicidade.

A natureza abstrata e caprichosa do ser feliz elucida o poder sedutor desse sentimento. Nunca sabemos se somos integralmente felizes, e o mero ato de formular a pergunta já faz com que deixemos de sê-­lo. Para Forbes, trata-se de uma experiência de satisfação plena que leva quem a vive a questionar a si próprio. “A felicidade é sempre um encontro surpreendente, que sidera o indivíduo que o experimenta a ponto de ele temer perder o controle”, destaca o psicanalista. Nada a ver com a sensação comezinha vivenciada, por exemplo, após a vitória do país numa Copa do Mundo. Para entender melhor isso, é preciso fazer uma distinção entre o estar feliz e o ser feliz. O primeiro é um estado de ânimo, uma circunstância que oscila no dia a dia. Já o segundo não é resultado de um cálculo; assim, quando chega, interrompe o curso do tempo e causa assombro. Para saboreá-lo é preciso coragem, não se medir pela expectativa dos outros nem se deixar abater pela angústia de que se trata de algo transitório. Até porque muito provavelmente a coisa se repetirá.

Em fevereiro deste ano, na reportagem de capa “A ciência da felicidade”, VEJA noticiou um estudo da Harvard que acompanhou 300 pessoas durante oitenta anos a fim de descobrir o que faz alguém feliz. Segundo a pesquisa, todos os que disseram ter tido uma vida plena haviam mantido relacionamentos de qualidade — familiares, amorosos ou de amizade. Não é uma ideia nova. O filósofo Epicuro de Samos (341 a.C.-270 a.C.) já a pusera em prática quando, ao se mudar para Atenas, comprou uma casa grande em que podia abrigar uma dezena de amigos. “Mais importante que saber o que você vai beber ou comer é saber com quem vai beber ou comer”, costumava dizer. Epicuro entendia que não era a quantidade de amigos que importava, mas a qualidade das amizades.

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PRA FRENTE, BRASIL - Grupo de torcedores comemora na rua a vitória da seleção na Copa do Mundo de 70: efemeridade (Popperfoto/Getty Images)

Passados mais de dois milênios do epicurismo, permanece o xis da questão: como manter relacionamentos de “qualidade”? Com 7,6 bilhões de almas no planeta, nunca tantas pessoas viveram e envelheceram tão sozinhas. O número de casamentos e a taxa de fertilidade nos países desenvolvidos vêm diminuindo. Mais indivíduos estão trabalhando em casa; já não vão ao escritório. Sindicatos, associações cívicas, organizações de vizinhos, grupos religiosos e outras fontes tradicionais de solidariedade social estão perdendo terreno, o que aumenta a sensação de isolamento. O Centre for Time Use Research, grupo de pesquisa da Universidade de Oxford, na Inglaterra, faz um alerta para o fato de que os americanos passam menos de meia hora por dia falando com outro ser humano, e 30% admitem jantar sozinhos. Segundo a organização Fondation de France, 30% dos franceses não têm um confidente. Na Inglaterra, 9 milhões de pessoas sofrem algum distúrbio relacionado à solidão. A Agência Nacional de Estatísticas, sediada em Londres, divulgou um estudo em que mostra que jovens entre 16 e 24 anos são os que mais reclamam da falta de companhia: 10% dos entrevistados disseram se sentir frequentemente sozinhos. Em janeiro passado, a premiê Theresa May criou o Ministério da Solidão, para combater o que chamou de “a triste realidade da vida moderna”.

E as novas tecnologias, não estão mudando esse quadro? Ao contrário, parecem agravar o problema. No raciocínio da escritora inglesa Ruth Whippman, autora do livro America the Anxious (América, a Ansiosa, 2016), o uso das mídias sociais só aprofundou as divisões e distâncias já existentes. “A introspecção e certo grau de solidão são partes importantes de uma vida psicologicamente saudável. No entanto, em algum ponto do caminho perdemos o equilíbrio”, avalia ela. Faz sentido. De que adianta ter milhares de seguidores nas redes e nenhum amigo para ir ao cinema? Quando desliga o celular, o computador, o tablet, o indivíduo se vê mais sozinho que nunca.

A dificuldade em criar vínculos é preocupante porque relações interpessoais saudáveis aumentam a longevidade. Pessoas solitárias enfrentam mais obstáculos para dormir, apresentam baixa imunidade e maior nível de stress. Alguns estudos sugerem que a solidão pode aumentar em 50% o risco de morte prematura. Se ela é tão nociva, por que as pessoas ainda se relacionam via aplicativos, em detrimento da vida real? Para Giannetti, o problema é que a tecnologia dá a impressão de nos proteger do sofrimento inerente a todo relacionamento pessoal. “Ao nos relacionarmos virtualmente, temos a sensação de estar no controle; deletamos quem nos desagrada. Contudo, isso é viver na retranca”, sublinha ele. “Por mais que a tecnologia nos resguarde dos males do mundo, o que ela nos oferece não é felicidade, é prudência”, acrescenta Bruckner. A prudência, tal como a satisfação plena, pode ser paralisante. A verdadeira felicidade é o que move.

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Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601

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