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Estamos preparados para enfrentar um vírus igual ao do filme ‘Contágio’?

O site de VEJA entrevistou epidemiologistas, virologistas e especialistas em saúde pública para saber quais as chances de surgir um vírus igual ao fictício MEV-1, e o que já existe para prevenir novas doenças

Por Jones Rossi
30 out 2011, 12h28

O grande protagonista do filme Contágio, que estreou esta semana nos cinemas e tem no elenco Matt Damon, Kate Winslet, Jude Law e Laurence Fishburne, é um vírus fictício chamado MEV-1. Capaz de matar uma a cada quatro pessoas que infecta, ele materializa uma ameaça cada vez mais presente: os vírus emergentes, micro-organismos devastadores que, subitamente, saltam de um hospedeiro do mundo selvagem para os humanos e se propagam pelo planeta.

O MEV-1, talvez o vírus mais verossímil criado pelo cinema, foi criado pelo roteirista Scott Burns em parceria com a escritora Laurie Garrett, autora do livro A Próxima Peste (Editora Nova Fronteira). O modo de transmissão, os sintomas e a mortalidade foram inspirados no misterioso vírus Nipah, no vírus da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Severa, em português), e na gripe espanhola (veja quadro com os vírus mais perigosos do mundo).

Do Nipah, os roteiristas tiraram o modo de transmissão. O vírus tem como hospedeiro os morcegos que moram nas florestas da Ásia, mas de alguma forma, provavelmente por meio de frutas semi-mastigadas que caíram em chiqueiros, ele ‘passou’ para os porcos. Daí foi um passo para contaminar humanos, dando início a surtos na Malásia e Cingapura que mataram mais da metade das pessoas infectadas. Ele gera uma grave inflamação cerebral, como uma meningite, causando convulsões iguais às produzidas pelo MEV-1 no filme.

O vírus da SARS também guarda semelhanças com o MEV-1. Os dois surgiram na província chinesa de Guangdong. A primeira pessoa a ser contaminada pelo SARS quando a epidemia surgiu, em 2003, também deve ter sido um cozinheiro. A doença teve origem em um felino selvagem chamado civeta. Nos anos 1990, o bicho passou a ser utilizado na culinária chinesa. Diferente do Nipah, que só é transmitido pelo contato direto com animais, ele sofreu uma mutação que lhe permitiu ser transmitido de humano para humano, pelo ar, como o MEV-1.

A rápida escalada das mortes que o fictício MEV-1 causa se assemelha bastante ao que aconteceu com a gripe espanhola, entre 1918 e 1919, período final da Primeira Guerra Mundial. Com uma população fragilizada pela guerra, ele pôs doente metade do planeta e matou 40 milhões de pessoas em questão de meses. Sem lugar nos hospitais, os doentes ficavam em ginásios transformados em enfermarias. Depois, valas coletivas se tornaram o destino comum de quem perecia. (continue lendo a reportagem)

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Vírus emergentes – Dois questionamentos emergem do cenário quase apocalíptico criado pelo diretor Steven Sodenbergh. O primeiro é: quais as chances de um vírus como o MEV-1 se tornar real? Caso isso aconteça, estamos preparados?

“Sem dúvida, há chances de pandemias causadas por vírus semelhantes surgirem”, afirma o infectologista brasileiro Stefan Cunha Ujvari, autor dos livros A História da Humanidade Contada Pelos Vírus e Pandemia – A Humanidade em Risco.

Stefan se refere aos vírus emergentes, cada vez mais comuns. São vírus relativamente novos e letais, como o Marburg, o Ebola e o Lassa, causadores de febres hemorrágicas capazes de transformar o interior de uma pessoa em uma sopa de órgãos. A visão não é agradável: os doentes expelem sangue até pelos olhos. “O Ebola faz em dez dias o que a aids leva dez anos”, afirma, no livro Hot Zone, sobre a história do Ebola, o escritor Richard Preston.

Vírus tão agressivos quanto os causadores das febres hemorrágicas parecem não fazer sentido do ponto de vista biológico. “São vírus ‘burros’, pois matam os hospedeiros muito rapidamente”, diz Stefan. Vírus que convivem há milhares de anos com o gênero Homo, como o da herpes e da hepatite, e como o HPV, hoje mal se fazem notar, apesar de estarem presentes na maioria das pessoas. A tendência é que, com o passar do tempo, os vírus sofram mutações para ficar menos letais.

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“Os vírus não foram feitos para contaminar humanos”, explica o virologista Wyller Mello, vice-diretor do Instituto Evandro Chagas, em Belém, no Pará. “Eles foram feitos para infectar as aves e outros animais. O prolongado contato com humanos fez com que esses vírus se adaptassem.”

A simbiose entre o gênero Homo e os vírus é muito antiga, mas se intensificou com o surgimento da agricultura, por volta de 10.000 anos. Foi então que se iniciou um processo que continua até hoje: os homens criam vilarejos e cidades avançando sobre florestas selvagens, com animais selvagens e também vírus selvagens.

“Esses vírus não têm tempo de se adaptar ao hospedeiro humano, por isso o alto grau de mortalidade”, diz Stefan. Quando surgiu em 1968, o vírus H3N2, conhecido então como o vírus da gripe asiática, tinha uma mortalidade muito mais alta que nos dias atuais. Hoje, ele é um vírus comum, um dos três que causam a gripe sazonal.

O mesmo aconteceu com a gripe suína, causada pelo H1N1, que surgiu em 2009. Em pouco tempo se espalhou pelo planeta, assustando a população. No ano seguinte, já não possuía a mesma letalidade do ano anterior. Darwin explica: os vírus mais letais do ano anterior mataram rapidamente seus hospedeiros e não conseguiram contaminar outras pessoas, ao contrário das cepas mais brandas.

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Vírus como o da gripe têm como material genético o RNA, uma estrutura mais rudimentar que o DNA. Ao contrário das células humanas, nas quais o DNA é responsável por desencadear uma série de processos metabólicos, nos vírus, RNA ou DNA servem apenas para fazer novas cópias dos próprios vírus.

Enquanto os DNA vírus, como a varíola, fazem cópias perfeitas de si mesmos, os RNA vírus fazem cópias cheias de erros, ou mutações. Às vezes, trata-se da troca de um único aminoácido. Já é o suficiente, contudo para criar uma nova cepa, como as gripes anuais, ou mesmo tornar o vírus apto a deixar seu hospedeiro habitual e migrar para humanos.

Porque o vírus da varíola não conta com várias cepas, foi possível criar uma vacina eficiente para combater a doença. Em 1977, após uma intensa e histórica campanha de vacinação conduzida pela Organização Mundial da Saúde no mundo inteiro, a doença foi erradicada. Isso criou um clima de otimismo em relação ao futuro das doenças. (continue lendo a reportagem)

Fim das doenças – “Até os anos 1980, tínhamos convicção de que seríamos capazes de acabar com as doenças transmissíveis”, diz Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. “O vírus da aids foi a primeira prova de que estávamos errados.”

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A Secretaria de Vigilância em Saúde é o equivalente nacional aos Centros de Controle de Doenças e Prevenção dos Estados Unidos, cuja sede fica em Atlanta. Como a personagem Erin Mears (Kate Winslet), de Contágio, os agentes do CDC vão para o local da infecção descobrir o máximo possível sobre o vírus: qual é sua mortalidade, quanto tempo dura o período de incubação e quando os pacientes começam a eliminar o vírus (pode ser muito antes que os sintomas apareçam, aumentando o alcance da doença).

“Nenhum país do mundo pode afirmar que está plenamente preparado para uma nova doença”, diz Barbosa. “É preciso estar preparado para as doenças já conhecidas.” Devido ao tempo de incubação, nada impede que um doente que aparentemente está saudável entre no país carregando um vírus altamente infeccioso. “O importante é que os hospitais estejam preparados quando receberem os doentes”, afirma Barbosa.

De certa forma, todos os países do mundo, inclusive o Brasil, aprenderam muito com a epidemia de SARS e a de gripe suína. A primeira lição foi a de que não se deve sonegar informações. A China poderia ter controlado antes a epidemia se tivesse informado a OMS sobre a doença. Desde então, os países se comprometeram a compartilhar informações de saúde pública. A OMS também não precisa mais esperar pela informação. Ela pode exigi-la, em face de uma ameaça. E os ministérios da saúde são obrigados a responder.

Em 2011, o Brasil forma sua 11ª turma especializada em treinamento de campo, em parceria com o CDC americano, que implantou isso por lá nos anos 50. O Brasil também possui três laboratórios capazes de detectar novos vírus, o Adolfo Lutz, em São Paulo, o Fiocruz, no Rio de Janeiro, e o Evandro Chagas, em Belém.

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No Evandro Chagas, foi inaugurado este ano um laboratório de segurança máxima, capaz de trabalhar com animais contaminados. Em instalações do gênero, o ar que circula é renovado a cada cinco minutos, nenhum organismo vivo pode sair do laboratório e existem equipamentos capazes de isolar vírus desconhecidos. “Temos mais de 100 vírus, coletados em incursões pela floresta amazônica”, conta Wyller Mello.

Desde 2005, existem os CIEVS (Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde). Eles monitoram a situação em território nacional, por meio de videoconferências com os CIEVS estaduais. Além disso, um sistema busca palavras-chave na internet, como ‘infecção’ e ‘hemorragia’. O Brasil também conta com um acordo de cooperação com o CDC chamado projeto de vigilância interface animal-humana, para detectar vírus que consigam atravessar a ponte que separa espécies diferentes.

Mesmo assim, como Barbosa admite, é impossível prever como será a próxima epidemia. Durante um bom tempo o Brasil esteve preparado para uma epidemia de gripe aviária, que é transmitida pelo contato prolongado com aves ou, em raríssimos casos, com humanos infectados. Era uma preparação voltada para poucas e graves ocorrências. Mas a gripe suína, mais branda, porém mais disseminada, chegou antes. Foi preciso retirar o antiviral Tamiflu das farmácias para que o estoque não acabasse. No filme, algo parecido acontece quando é divulgado que um remédio homeopático, a forsítia, pode combater o MEV-1. Sinal de que, como defendem os roteiristas de Contágio, nada se espalha mais rápido que o medo.

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