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Universidade na UTI

O reitor da Uerj, Ruy Garcia Marques, aponta as raízes da crise que paralisou uma das mais prestigiadas instituições do Brasil

Apresentado por Atualizado em 1 set 2017, 06h00 - Publicado em 1 set 2017, 06h00

O cirurgião-geral Ruy Garcia Marques, de 62 anos, assumiu o posto de reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) no início de 2016, quando já fervilhava ali a pior crise desde a criação da instituição, em 1950. Os problemas continuam: o ano letivo de 2017 só começou para todas as turmas na semana passada, sob o risco de nova greve. Arrastada para o fundo do poço, local onde estão hoje todos os órgãos dependentes do falido governo fluminense, a Uerj é também um símbolo do modelo antiquado de gestão que rege as universidades públicas do país. Desde 1973, Marques nunca saiu do câmpus do Maracanã, Zona Norte carioca, o qual frequentou primeiro como aluno de medicina, depois como professor, ainda em atividade, e agora como reitor. Em seu gabinete, ele falou a VEJA.

A Uerj corre o risco de fechar? Não, porque há acenos positivos do governo para a salvação da universidade, mas esta é com certeza a mais grave crise que já vivemos. Mesmo com a volta às aulas, a Uerj continua a respirar por aparelhos. Dependemos quase que exclusivamente de um estado em calamidade financeira e com reputação de mau pagador. Procuramos cinquenta empresas para assumir o restaurante do câmpus, que está parado; nenhuma quis entrar na concorrência, alegando, com razão, o risco de não receber pelo serviço. Uma instituição de ensino leva anos para construir um nome, mas aprendi que isso se dilapida em pouco tempo.

Mesmo com tanta aula perdida, o 8 de setembro vai ser ponto facultativo? Sim. É decreto do governador Luiz Fernando Pezão, que é quem decide essas coisas.

De que maneira a crise compromete a qualidade acadêmica? O vestibular da Uerj, sempre disputadíssimo, sofreu uma queda de quase 60% na procura. Sei que haverá ótimos alunos entre os inscritos, mas provavelmente estamos deixando de atrair talentos. Outro ponto: será que os bons alunos, que passam em mais de um vestibular, escolherão neste ano a Uerj? Temo também que alguns de nossos melhores professores saiam. Tudo isso é preocupante. Uma boa instituição de ensino se faz da concentração de cérebros talhados para refletir, investigar e mudar o conhecimento de patamar.

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Faltou sensibilidade por parte do governo em relação à Uerj? Se a educação fosse entendida como algo estratégico, não estaríamos nessa situação. Acho que houve um tremendo avanço na sociedade brasileira, que hoje sabe do valor de um bom ensino. Mas autoridades de todas as esferas não parecem entender dessa maneira: educação é investimento de longo prazo, e os resultados são colhidos bem depois de um mandato.

Como autoridade máxima da Uerj, o senhor não teve meios de impedir a decadência da universidade? Apesar da autonomia que as universidades desfrutam, a verdade é que o raio de ação do reitor de uma instituição pública de ensino no Brasil é muito limitado. Sou um gestor que não faz a gestão do dinheiro. Não sou o administrador do caixa. Certa vez, um amigo meu foi chamado para comandar uma das grandes universidades do país e declinou do convite. Fiquei espantado, quis saber por quê. Ele respondeu: “Reitor não manda nada”.

O senhor diz que o problema central da crise na Uerj é a alta dependência de um estado sem dinheiro. Não seria o caso de repensar esse modelo? Não há dúvida. Não é à toa que a maioria das universidades estaduais está em apuro financeiro, e as federais já começam a sentir os reflexos da crise econômica. Hoje, 95% do orçamento da Uerj vem do governo e só 5% vem de pesquisa aplicada e convênios. Seria muito bom expandir os laços da universidade com a iniciativa privada, sob vários pontos de vista, como ocorre tão frequentemente em países como Inglaterra e Estados Unidos.

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O que dificulta essa expansão? Há núcleos de professores e alunos na universidade que tradicionalmente veem com desconfiança a aproximação com o setor privado. Temem que isso leve a um desvirtuamento do propósito original de uma instituição de ensino. Estreitar o elo com o mundo privado, afirmam, seria como privatizar a universidade. Eu discordo. É justamente dessa conjunção de forças que nasce a inovação. Para o Brasil entrar no jogo global e produzir patentes em ritmo desejável, será preciso abrir os portões da universidade às empresas, como já se vê aqui e ali. A Uerj mesmo está iniciando a construção de um parque tecnológico com o objetivo de criar um ecossistema favorável à inovação.

Por que grandes empresários brasileiros doam tanto dinheiro a universidades americanas e não às combalidas instituições daqui? Eles não têm incentivo algum para fazer doações no Brasil — e esse é um problema crucial para a universidade pública brasileira. Existe a Lei Rouanet para a cultura, que alivia os impostos em troca de doação, mas não há nenhum mecanismo semelhante para a educação. De novo, acho que isso tem a ver com o fato de a educação não ser vista pelos políticos com a atenção que merece.

Como reitor, o senhor já tomou alguma iniciativa para promover doações? Sim, mas não deu em nada até agora. Enviei à bancada de deputados do Rio uma solicitação para que se pusesse em pauta projeto de lei propondo a criação de incentivos à doação a universidades. Zero de resposta. Minha ideia agora é chamar os políticos ao debate dentro do câmpus. Se avançar, isso pode ser um divisor de águas para o ensino superior.

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Por que nenhuma universidade brasileira aparece em destaque nos rankings internacionais? Esses rankings medem em alto grau o nível de internacionalização das universidades — a porção de alunos e professores de diferentes nacionalidades, o impacto das publicações em revistas estrangeiras. As instituições brasileiras, apesar das parcerias e pesquisas de relevo, ainda são pouco globalizadas em comparação às outras. Também são muito mais engessadas na hora de recrutar gente talentosa de toda parte, como se vê na Harvard, nos Estados Unidos, ou na Cambridge, na Inglaterra. Na Uerj, assim como nas universidades públicas em geral, não há mecanismos para fazer uma superproposta que atraia um alto acadêmico de fora. Somos uma empresa regida por regras obsoletas.

Em que medida essa limitação às contratações representa um obstáculo ao avanço? Na medida em que o sistema nivela os mais empenhados aos menos empenhados, os bons aos maus profissionais. Se estivéssemos em outros países, aqueles que sobressaíssem estariam ganhando mais, enquanto os que não funcionassem seriam expelidos da engrenagem. Outro dia, conversei com Paulo Niemeyer, diretor de um centro de neurocirurgia que leva seu nome, no Rio. O centro é também bancado pelo Estado, mas por um sistema diferente: é uma organização social, uma OS. Significa que está sob regras mais flexíveis de gestão. Paulo me disse: “Se alguém não está trabalhando bem, mando embora”. Já eu não posso fazer isso. Pelas normas do funcionalismo público, só é dispensado quem comete falta gravíssima.

Por que a Unicamp ultrapassou a USP no último ranking que mediu a qualidade das universidades na América Latina? A maior abertura da Unicamp a parcerias com a iniciativa privada, aferida no ranking, certamente foi um ponto que ajudou a alçar a universidade. Isso só reforça o que eu já vinha dizendo.

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Vários aspectos que freiam o avanço da universidade pública brasileira diferem dos que são vistos nas melhores instituições de ensino superior do mundo. Por que o Brasil insiste em permanecer na contramão? Existe uma turma que é ainda refratária à ideia de se abrir à experiência internacional. Isso vem dos mesmos grupos que olham com desconfiança a aproximação com a iniciativa privada. Não é que não queiram estabelecer elos de pesquisa com grandes nomes da academia mundial. Isso eles querem, mas com ressalvas, mantendo certa distância. Veja como Japão, Coreia do Sul e China se beneficiaram de tudo o que aprenderam frequentando o ensino superior nos Estados Unidos.

A Uerj passou décadas recebendo herança daqueles que não tinham para quem deixar o dinheiro. Esse patrimônio não pode ser usado para abrandar os efeitos da crise atual? Esse patrimônio já traz verbas para a universidade, mas há uma camisa de ­­­força na maneira como podemos aplicá-las. Se vendermos um desses imóveis, o dinheiro terá de ser usado para investimento na universidade, e não para custeio. Quer dizer que não poderíamos pagar os salários atrasados com recursos dessa fonte de renda, por exemplo. É outra limitação que cerceia a administração.

Por que um bem como o Canecão (casa de espetáculos no Rio fechada desde 2010) hoje é um prédio em ruínas quando poderia ajudar no caixa da UFRJ, a dona do terreno? Não conheço profundamente o assunto, mas soube que tentaram instalar um Hospital Sírio-Libanês ali. Mais uma vez, houve resistência daqueles que temem a “privatização”. Estamos falando de um terreno em local valorizadíssimo, que infelizmente está sem uso.

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Os ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, encabeçaram a iniciativa de transferir o curso de direito da Uerj, um dos mais prestigiados do Brasil, para o prédio do Tribunal de Justiça do Rio. Seria uma forma de garantir e até aprimorar o seu funcionamento. A possibilidade é concreta? Essa é uma conversa ainda muito inicial. Há certa resistência por parte de uma turma do direito. Vamos ver como vai caminhar.

A Uerj foi a universidade pioneira na adoção do sistema de cotas, em 2002. Qual é a avaliação geral? O sistema deu certo porque cumpriu o que propunha: incluir estudantes que precisavam de um empurrão para entrar no ensino superior, sem baixar a qualidade acadêmica. Mas o sistema precisa ser aprimorado, e estamos neste momento debatendo como fazer isso.

Qual é o ponto que precisa ser melhorado? Hoje basta um aluno se autodeclarar merecedor de cota para que ele dispute o vestibular nessa raia. Só que essa peneira sem nenhuma verificação deixa passar gente que não deveria ser cotista. Sei por minha própria experiência: como professor de medicina, dava aula a um rapaz branco de olhos azuis que ingressou na Uerj como cotista. Ele acabou sendo denunciado e expulso. Temos de avançar aí, mas não queremos criar bancas nem tribunais. O que espero mesmo é que um dia não precisemos mais das cotas. Esse dia só vai chegar quando a educação estiver no topo das prioridades nacionais.

Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546

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