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Uma epidemia bestial

Controlar a venda de armas reduz o número de homicídios em geral — mas não basta para impedir matanças indiscriminadas como a de Las Vegas

Por Duda Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Johanna Nublat Atualizado em 6 out 2017, 06h00 - Publicado em 6 out 2017, 06h00

Produto de mentes impenetráveis que se preparam por meses para ceifar a maior quantidade de vidas possível, os assassinatos em massa de inocentes nos Estados Unidos se tornaram assustadoramente frequentes. Na noite de 1º de outubro, um domingo, o contador aposentado Stephen Paddock, de 64 anos, fechou-se em um quarto de luxo no 32º andar do hotel Mandalay Bay, em Las Vegas, com um arsenal de 23 armas, que incluía um fuzil AR-15 e uma AK-47. Doze dos seus rifles tinham sido alterados com o acessório chamado bump stock, que dá à arma a capacidade de disparar centenas de tiros por minuto. Os equipamentos foram apoiados em tripés perto da janela, o que permitiu a ele mirar com precisão contra 22 000 pessoas que assistiam a um show de música country a 460 metros de distância, diante de um palco instalado na esquina oposta à do hotel em que se hospedava.

Durante dez minutos, Paddock desfechou cerca de uma dúzia de rajadas contra a multidão, que a princípio pensou tratar-se de fogos de artifício. Em alguns vídeos feitos por celular, é possível identificar noventa tiros em dez segundos. Entre os que assistiam ao show estava o casal Denise e Tony Burditus. Os dois só perceberam que era um ataque na segunda rajada de disparos e apenas então buscaram escapar dos tiros. Ela foi atingida e caiu, inconsciente. Levada ao hospital, não resistiu. “Denise morreu nos meus braços”, escreveu o marido em uma rede social. Em outro ponto, Brian MacKinnon viu o amigo Adrian Murfitt levar um tiro no pescoço. Tentou fazer pressão para estancar o sangue, mas não conseguiu salvá-lo.

Às 22h08, três minutos após a primeira rajada, um policial no show identificou que os tiros vinham do hotel Mandalay Bay. A informação foi confirmada seis minutos depois por um oficial no 31º piso do hotel, que escutou o barulho vindo do andar de cima. Às 22h17, policiais se posicionaram em frente ao quarto de número 135 e pediram o envio de uma equipe da Swat, que chegou 23 minutos após o início do ataque. Eles arrombaram a porta e encontraram o atirador morto. Ao todo, 58 pessoas morreram e 527 ficaram feridas no maior massacre a tiros da história americana, superando o atentado a uma boate gay em Orlando, em junho de 2016, que teve 49 mortos.

Nos últimos oito anos, foram rotineiras as falas do ex-presidente Barack Obama, após tragédias como essa, pedindo um controle maior da venda de armas. Isso porque, nos Estados Unidos, um adolescente não consegue comprar uma lata de cerveja, um maço de cigarros ou mesmo uma raspadinha de loteria, mas está liberado para adquirir, basta que tenha o dinheiro, a arma que desejar. O atual mandatário, Donald Trump, no entanto, não toca no assunto e, mesmo no dia da tragédia, esquivou-se do tema ao comentar o massacre. “Eu sei que estamos procurando algum tipo de significado no caos, algum tipo de luz no escuro. As respostas não são fáceis”, disse ele em uma coletiva de imprensa, lendo um texto no teleprompter. Que é complexo, não há dúvida. Que tem a ver, em alguma coisa, com armas, também não há. “Aos poucos, Trump está se aproximando da abordagem republicana. Não creio que outros políticos de seu partido, como George Bush, Mitt Romney e John McCain, teriam uma reação diferente”, diz Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais na PUC de São Paulo. A razão é simples: a base eleitoral republicana defende, em sua maioria, o direito inalienável do cidadão de comprar armas.

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As estatísticas mostram que o maior controle no comércio de armas comprovadamente reduz os homicídios com armas de fogo, especialmente quando se exige uma análise rigorosa do histórico do comprador. Contudo, as mesmas estatísticas também revelam que não há uma relação direta entre o nível de controle que cada estado americano adota e a incidência de tiroteios em massa. Como se vê, o assunto é complexo, mas até hoje ninguém encontrou uma explicação para as matanças em que os armamentos não entrem na equação.

(Arte/VEJA)

Paddock adquiriu sua primeira arma de fogo em 1982. No ano passado, no entanto, ele começou a montar um arsenal, comprando em quatro estados nada menos que 33 armas — das quais 24 foram encontradas em suas duas casas. Não há, pela lei federal americana, exigência de que os vendedores avisem às autoridades quando uma pessoa compra múltiplos rifles, e só a força do lobby pró-armas mantém esse ponto intocado. Mais surpreendente ainda é a ausência de limites para a aquisição de equipamentos sem nenhuma utilidade prática a não ser a de causar dezenas de vítimas. Um veto federal à compra de fuzis semiautomáticos, como os usados por Paddock, expirou em 2004, e nunca foi renovado. “Não há nenhum motivo plausível para permitir a venda de armas de assalto para o público. A razão é puramente política: a indústria de armas tem enorme influência política”, diz o professor de direito americano Carl Bogus, da Universidade Roger Williams. Armas automáticas são proibidas, mas não os bump stocks, que convertem as semiautomáticas em automáticas. Poucos estados limitam o tamanho dos cartuchos para até dez tiros.

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Apesar de ser filho de um assaltante de bancos, Stephen Paddock não tinha nenhuma mancha em seu currículo que o impossibilitasse de comprar uma arma. Vivia com a namorada, filipina, sem despertar suspeitas. “Ele era apenas um cara que jogava videopôquer, viajava em cruzeiros e comia burritos no Taco Bell. Não tinha nenhuma afiliação política, pelo que a gente saiba. Também não tinha religião”, disse seu irmão Eric em entrevista a um programa de televisão.

Preparado – O interior do quarto usado por Paddock (no detalhe) e seu corpo (abc/Reprodução)

Para as estatísticas de massacres a tiros, o governo americano conta apenas os casos em que quatro ou mais pessoas são mortas indiscriminadamente em um local público. Por esse critério, houve oito episódios entre janeiro e junho deste ano. Os Estados Unidos concentram a maior parte dos casos desse tipo: 66% de todos os que ocorrem no mundo. A cada novo ataque, mais americanos criminosos sen­tem-se­­ encorajados a imitar a carnificina. “De certa forma, dá para chamar isso de epidemia, porque acontece aqui com uma frequência fora do padrão para a maioria dos países. Por outro lado, a palavra ‘epidemia’ pode criar a falsa impressão de que há uma causa só”, diz o cientista político Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago. E conclui: “A única coisa que se pode dizer com certeza é que tanto a cultura de armas no país quanto a facilidade de conseguir fuzis de alta potência ampliam a letalidade desses ataques”.

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Publicado em VEJA de 11 de outubro de 2017, edição nº 2551

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