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Teste do preconceito

Os jornalistas Heitor Feitosa, negro, e Cláudio Rabin, branco, passaram por 85 estabelecimentos para checar se a cor da pele influía no tipo de atendimento

Por Heitor Feitosa, Claudio Rabin
Atualizado em 24 nov 2017, 19h56 - Publicado em 17 nov 2017, 06h00
(VJ2557/VEJA.com)

“Existe preconceito de côr no Brasil”, gritava em letras maiúsculas, e caprichosamente negras, o título de uma das reportagens sobre racismo da edição de outubro de 1967 de Realidade, publicação mensal da Editora Abril, que edita VEJA. Meio século atrás, com a ditadura em vigor por aqui, o sol nas bancas de revista se repartia em crimes, espaçonaves, guerrilhas, em Cardinales bonitas — quem lê tanta notícia?, se perguntava Caetano Veloso. Para Realidade, a notícia que não se podia deixar de ler era sobre a discriminação racial no país, “o que muitos sabem e poucos dizem”. Assim, escalados pela publicação, um repórter branco, Narciso Kalili, e um negro, Odacir de Mattos, percorreram durante vinte dias seis capitais para “descobrir se brancos e negros são iguais no Brasil”. Em Belém, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre a dupla passou por hotéis, restaurantes, cabarés etc. com um único objetivo: investigar se a cor da pele alterava o tratamento dispensado a cada um. Fingindo não se conhecerem, Kalili e Mattos iam aos mesmos lugares, faziam idênticas perguntas — e depois comparavam os resultados. Em Salvador, o jornalista negro ouviu, em uma escola infantil, que seu filho não poderia estudar lá porque não havia mais vagas. Minutos depois, ao branco foi dito o oposto: “Quer fazer a matrícula já?”. Realidade estava certa: havia preconceito de cor.

NAS BANCAS DE REVISTA – Capa de Realidade de outubro de 1967 (//Dedoc)

Em maio de 1990, VEJA convocou para um teste similar três repórteres: um branco, um pardo e um oriental, segundo a classificação do IBGE. A experiência restringiu-se à capital paulista, mas o resultado foi semelhante ao de 1967. Numa loja de roupas, por exemplo, o jornalista pardo teve a calça que examinava arrancada das mãos por uma vendedora, que a entregou ao repórter branco. “Discriminação explícita”, cravou o título da reportagem.

Para a presente edição, VEJA resgatou a metodologia do experimento de Realidade e pôs em campo os jornalistas Heitor Feitosa, negro, e Cláudio Goldberg Rabin, branco (leia o quadro abaixo). Durante vinte dias, eles visitaram 85 estabelecimentos, de sete capitais: São Paulo, Florianópolis, Curitiba, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador e Belém. Ao contrário das experiências anteriores, o tratamento dispensado à dupla se mostrou mais equilibrado. E, nas poucas vezes em que não foi assim — com o repórter negro sendo encarado com desconfiança —, todos os estabelecimentos procurados pela revista para que se explicassem afirmaram ter sido fortuitos os episódios de discriminação. No caso do teste feito por Rabin e Feitosa, cujo relato vem a seguir, é possível que o tratamento desigual tenha sido excepcional. Infelizmente, contudo, outras reportagens desta edição, como “Vergonha brasileira” e “O racismo no espelho”, seguem atestando, com dados estatísticos, o que muitos sabem e poucos dizem: existe preconceito de cor no Brasil.

Não há vagas?

Uma das tarefas que a dupla de repórteres se impôs foi tentar emprego de vendedor em lojas de marcas conhecidas. Tarefa difícil — os tempos são de crise. De Florianópolis a Belém, eles entravam separados nos mesmos estabelecimentos e pediam para conversar com o gerente. A resposta mais comum, para um e para o outro, foi esta: “Não temos vagas”. Na Calvin Klein do Shopping Iguatemi de Florianópolis, entretanto, ocorreu algo diferente: todas as posições estavam ocupadas para Cláudio Rabin, o jornalista branco, e portanto não haveria chance para ele. Já Heitor Feitosa, negro, poderia participar de uma seleção — não para vendedor, mas para estoquista, um trabalho longe do público, que não foi nem oferecido ao branco. Em São Paulo, na Polo Play do Shopping Anália Franco, não havia oportunidade para nenhum dos dois, mas um detalhe chamou atenção: apenas ao repórter branco foi dito que havia uma chance em outra unidade. A vendedora chegou a anotar o e-mail do gerente em um pedaço de papel e o entregou a Rabin. Para Feitosa, nada.

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Segurança no encalço

A pretexto de dar presentes de aniversário de namoro às respectivas namoradas, os dois repórteres visitaram várias joalherias e lojas de bijuterias finas. O atendimento nesses locais foi sempre cordial, com direito a água e café expresso. Tudo muito razoável, exceto em um aspecto. Feitosa entrou primeiro na Bvlgari do Shopping JK Iguatemi, em São Paulo, onde as vitrines ostentam colares cravejados de diamantes que custam até meio milhão de reais. Ato contínuo, o segurança se levantou e acompanhou de perto o processo de atendimento. Isso não aconteceu com Rabin, que circulou sem segurança por perto. Na Swarovski do Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, houve o único caso de toda a reportagem em que o jornalista negro teve um atendimento notadamente mais gentil que o dispensado ao branco. Ambos foram bem recebidos, com oferta de doces e café. Na saída, contudo, apenas Feitosa ganhou um pequeno vaso com uma delicada planta — e um cristal. Era só uma trégua. No exclusivíssimo VillageMall, na Barra da Tijuca, numa tarde de sexta-feira, o número de seguranças parecia quase igual ao de frequentadores. Enquanto caminhavam pelos largos e vazios corredores, sempre longe um do outro, os repórteres notaram que os agentes de segurança tinham os olhos e os comunicadores voltados para Feitosa. Enquanto ele esteve na fast-fashion Forever 21, um guarda passou por ali algumas vezes. Nada foi percebido quanto a Rabin. Em Brasília, os 100 primeiros passos do jornalista negro de VEJA dentro do ParkShopping foram seguidos por uma sombra de terno escuro. Nada com o colega.

Só nos cartazes

Em muitos dos estabelecimentos visitados, a presença de negros era menor do que a de brancos, mas as paredes ostentavam cartazes com modelos de pele escura. É uma cor que vende mas não compra?

Educação de elite

Em outro teste, a dupla passou por diferentes tipos de escola infantil de elite. O objetivo era saber se havia vaga para suas fictícias filhas pequenas. Uma constante era a quase inexistência de alunos negros em cada local, mas a receptividade não foi, de modo geral, contrastante. Em Brasília, no colégio Le Petit Galois, após a visita Rabin ganhou uma brochura com mais informações do lugar. O exemplar acabou esquecido no caso de Feitosa. Ainda assim, não seria correto afirmar que o atendimento tenha deixado a desejar. Todas as dúvidas foram sanadas com atenção. Em São Paulo, ao chegar, com hora marcada, à frente do portão da escola Gente Nossa, cuja mensalidade para aluno em período integral chega perto de 5 000 reais, Feitosa cumprimentou o segurança e disse que procurava pela secretaria. “Secretaria do quê?”, perguntou o funcionário, questionando em seguida se o jornalista agendara a visita. Rabin foi recebido com um “pois não, senhor”. A coordenadora, no entanto, atendeu os dois com excelência.

Dois ternos, duas medidas

Em lojas de vestuário masculino, a proposta era aferir o que seria oferecido a cada um dos repórteres, supostos padrinhos de um casamento imaginário. Nos dois primeiros estabelecimentos, o tratamento foi idêntico: educado. Quando a diferença ocorreu, pesou contra Feitosa. Na Brooksfield do Iguatemi Florianópolis, ele foi atendido por um vendedor que lhe mostrou somente os trajes em promoção, no valor de 700 reais. No caso de Rabin, dois atendentes se uniram para convencê-lo a comprar um costume de 1 500 reais. Deixaram um cartão com telefone e o produto reservado. E nem fizeram menção à liquidação.

Para Heitor Feitosa, “no geral, com o teste de agora, fica a impressão de que hoje em dia as pessoas estão mais preparadas para lidar com as diferenças — ou talvez disfarcem melhor sua desconfiança”. Cláudio Rabin é da mesma opinião. Juarez Xavier, coordenador do Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa e Extensão, atribui a mudança ao impacto das leis. “Na Constituição de 1988, o racismo passou a ter consequências legais, e isso foi o impulso para que as reações no cotidiano ficassem menos evidentes”, diz ele. Curiosamente, como aponta a pesquisa encomendada por VEJA, a imensa maioria das vítimas de discriminação racial no Brasil prefere não levar o caso às autoridades: 47% dos afrodescendentes entrevistados consideram que a legislação do país não é suficientemente rígida com o racismo. “Não vivo situações de preconceito o tempo todo, mas, em janeiro deste ano, fui barrado em uma padaria em Curitiba. O segurança me perguntou como eu faria para pagar a conta. Ser negro é ter sempre a sensação de estar sendo vigiado”, conclui Feitosa.

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Repórteres em ação

A DUPLA – Feitosa (à esq.) e Rabin: idade, tipo físico e temperamento semelhantes (Ricardo Matsukawa/VEJA.com)

O repórter fotográfico paulista Heitor Feitosa, de 29 anos, trabalha há quase seis no site de VEJA. O jornalista gaúcho Cláudio Goldberg Rabin, de 33 anos, é colaborador frequente da revista e do site. Para além do requisito obrigatório de que um dos integrantes da dupla escalada para o teste do preconceito tivesse pele escura e o outro, clara, a escolha de Feitosa e Rabin levou em conta a idade próxima, a estrutura física parecida (os dois são magros e regulam em altura) e certas semelhanças de temperamento (ambos são serenos e discretos, por exemplo). Nas visitas que faziam, eles se apresentavam com o mesmo tipo de indumentária: camisa e sapatos ou camiseta e tênis. “A ideia era não dar margem a nenhuma característica que nos diferenciasse, fora a cor de nossa cútis”, explica Feitosa. Mais detalhes da experiência em abr.ai/contraste-racial.

PRAIA DAS CARAVELAS (BA) 1991 (Walter Firmo/Imã Fotogaleria/)

Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2017, edição nº 2557

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