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Quando ensinar dói

Um rosto ensanguentado escancarou a violência nas escolas, mal que se alastra com a escalada do crime e envergonha o Brasil no ranking mundial

Por Maria Clara Vieira, Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 25 ago 2017, 15h17 - Publicado em 25 ago 2017, 06h00

Com o olho direito inchado e o sangue de um corte no supercílio escorrendo pelo rosto, a professora de português e literatura Marcia Friggi, de 51 anos, estremeceu na semana passada as redes sociais e, a partir delas, o país. Marcia, que dá aula para adolescentes e adultos em um supletivo em Indaial, no leste de Santa Catarina, levara um soco na cara de um aluno de 15 anos. Ela ia começar a falar de gramática e resolveu checar se alguém se distraía com o celular. Ele tinha um livro no colo. Ela, desconfiada, mandou que o pusesse sobre a carteira. Ele respondeu com um palavrão. Ela lhe ordenou que saísse da sala. Ele a atacou primeiro com o livro, depois com os punhos, na sala da direção. “O último soco me jogou na parede”, postou a professora junto com a foto. Era o primeiro dia de aula e o primeiro dia do aluno naquela escola, onde Marcia leciona há quatro anos — um dos dois empregos nos quais a mestra pós-graduada ganha 4 100 reais por mês.

Para professores da rede pública, que acomoda 90% dos estudantes, a barbárie do ato está longe de ser um caso isolado — como confirmam os personagens nestas páginas. Em São Paulo, no ano passado, um aluno de 8 anos arremessou um porta-lápis e abriu a testa de Shirlei Maia. Magali Nascimento teve uma tesoura apontada em sua direção. Mara Silva, do Gama, cidade-satélite de Brasília, levou socos e puxões de cabelo da mãe de um aluno, na frente dele. Em outra cidade-saté­lite, Ceilândia, um aluno expulso voltou com dois comparsas e surrou Valério dos Santos até lhe quebrar ossos do crânio e o maxilar. O Brasil, colecionador de estatísticas vergonhosas na educação, aparece no topo do ranking mundial como um dos países cam­peões em agressão a professores.

A constatação vem de estudo da OCDE, a organização das economias desenvolvidas, que aferiu o problema em 34 nações. A pergunta era: “Quem sofre ameaça verbal ou intimidação pelo menos uma vez por semana?”. No Brasil, 12,5% — quatro vezes a média verificada nos outros países pesquisados. Um segundo levantamento, este da QEdu, uma das principais plataformas de dados educacionais do país, mostra que dois terços dos professores da rede pública já viram aluno agredir aluno, e metade já viu aluno voltar-se contra professor (veja o quadro na pág. 76). A paulista Apeoesp, o maior sindicato de docentes da América Latina, acompanhou as ocorrências entre 2007 e 2011 e detectou um aumento de 20% a cada semestre.

Ferida na alma – Um lance rápido e inesperado produziu o corte profundo que aparece na foto ao lado. Então vice-diretora da Escola Municipal Altino Arantes, na Zona Leste de São Paulo, Shirlei Maia, de 58 anos, repreendeu um aluno que arremessava objetos na direção dos colegas. Ela acabou sendo alvo de um porta-lápis que lhe rasgou a testa. A agressão ocorreu em setembro de 2016, a imagem da lesão foi compartilhada milhares de vezes na internet, mas Shirlei nunca tocou no assunto. Segundo seu filho, Anselmo Maia, ela preferiu não expor o garoto, de apenas 8 anos. E, com a cicatriz na testa, segue dando aulas naquela escola. (//Reprodução)

Um dos motivos para esse triste estado de coisas está todos os dias nos noticiários: a escalada da violência das ruas, que transborda para dentro da escola. “O clima de insegurança ao redor de muitos colégios favorece a formação de gangues. As brigas entre elas começam fora e se reproduzem no ambiente escolar, que passa a ser visto como um local onde todos estão vulneráveis”, explica a socióloga Miriam Abramovay, coordenadora de um estudo sobre o assunto. A violência nas ruas e nas escolas tem um denominador comum na indefinição histórica sobre o melhor método para restabelecer a ordem. “A ditadura militar disseminou a ideia de que autoridade e autoritarismo são a mesma coisa. Toda e qualquer manifestação de disciplina passou a ser vista como empecilho à liberdade”, afirma Bene Barbosa, especialista em segurança.

(Arte/VEJA)

Famílias em que ocorrem espancamentos e agressões frequentes também contribuem para a formação de alunos violentos. O adolescente que esmurrou a professora Marcia em Santa Catarina chegou a ficar em coma depois de uma surra do pai, alcoólatra. O garoto já tinha um histórico de agressões: bateu em um colega e na própria mãe. A promotoria pede agora sua internação em um centro socioeducativo. Em famílias desestruturadas, o padrão de violência se entranha na criança. Nas “certinhas”, o que estimula o desrespeito é o excesso de cuidados e a escassez de limites.

“Os pais de hoje não falam ‘não’, por medo de traumatizar os filhos. Sua imobilidade nas situações que requerem firmeza torna a criança resistente a ser contrariada”, argumenta a educadora Tania Zagury, autora de Filhos: Manual de Instruções para Pais das Gerações X e Y. As letras X e Y do título representam as duas gerações que se seguiram aos baby boomers, assim chamados os nascidos no pós-II Guerra. Os boomers romperam com a extrema rigidez da educação em vigor até então, priorizaram o bem-estar, para si e para a família, e, eco da rebeldia dos anos 1960, empunharam a bandeira de educar os filhos de maneira oposta àquela como foram educados. Assim, puseram em marcha a troca definitiva do “não” pela negociação — que é uma boa tática, até deixar de ser.

As escolas, por seu lado, continuam apegadas a um sistema antigo e não se adaptaram aos novos tempos. “Elas não conhecem e não sabem lidar com crianças e adolescentes pouco afeitos a regras e limites”, aponta a especialista Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV-­RJ. Muitas optam por não impor autoridade, o que abre uma lacuna na disciplina. Outras, ao contrário, são rígidas demais. “Estas produzem uma espécie de violência institucionalizada, que estimula a rebeldia”, diz a socióloga Miriam. No meio das duas correntes, professores despreparados para lidar com o desrespeito predominante tocam seu trabalho como podem.

Um recorte da pesquisa internacional Talis revela que, no Brasil, apenas 12% dos docentes acham que seu trabalho é valorizado, em comparação com a média global, de 31%. E valorização é essencial para boa educação e respeito. Na Coreia do Sul, exemplo de ensino de alta qualidade, professores podem se tornar até celebridades milionárias, daquelas que enchem estádios com suas palestras. A Universidade de Seul coordenou há alguns anos uma pesquisa entre mulheres para saber — ah, os tempos politicamente incorretos… — que tipo de profissional elas consideravam o melhor partido para casar. Mais votado: o professor, que é altamente admirado, bem pago e ainda tem férias longas. Outra pesquisa, esta na Finlândia, também referência mundial de excelência, mostrou que os profissionais mais respeitados no país são os médicos, os padres e os professores. Lá, os pais pouco participam da vida escolar dos filhos, tamanha é a confiança de que os mestres vão prover o estímulo certo. Aqui, muitos pais participativos tomam o partido dos filhos em questões de disciplina, o que enfraquece ainda mais o papel do professor.

ATACADA POR UMA MÃE – Professora de escola pública em uma das cidades-satélite de Brasília, Mara Dantas Silva, de 46 anos, foi surpreendida dentro da sala dos professores pela furiosa mãe de um aluno. “O garoto era hiperativo e causava muitos conflitos”, conta Mara. A escola tentava lidar com o problema, repreendendo o menino, de 7 anos, até que, em setembro, o descontentamento veio em forma de violência física. A mãe entrou no recinto acompanhada do filho. “Ela me deu muitos socos e me agarrou pelo cabelo, descolando o couro cabeludo”, lembra Mara, que desenvolveu síndrome do pânico. “Hoje, faço tratamento com psiquiatra”, revela a professora. Expor esse tipo de drama é raridade no Distrito Federal: estimativas do sindicato local indicam que boa parte das vítimas prefere não falar sobre o assunto. (Cristiano Mariz/VEJA)

É nesse contexto de disciplina de menos e inação de mais, num país de violência brutal, que a agressividade dos alunos aflora. Uma pesquisa de 2015, baseada em testemunhos dos próprios professores, contabiliza 4 714 ameaças à vida, 16 413 furtos ou roubos de seus pertences e quase 15 000 ocorrências de estudantes flagrados portando facas e armas de fogo dentro do colégio. Como reverter o cenário? Em 1970, o bairro do Harlem, em Nova York, era um entreposto de traficantes de drogas, tomado por gangues — situação que se reproduzia nas escolas. Quando um movimento de reação enfim se esboçou, ele partiu exatamente da sala de aula: colégios, comunidade, empresários e prefeitura se mobilizaram para pôr ordem no ambiente escolar. Os professores foram treinados para lidar com turmas-problema. As entradas receberam sistemas de detecção de armas. Pais e alunos passaram a dispor de atendimento psicológico. Equipes de especialistas davam plantão para conter situações de violência. O esforço conjunto de pacificação das escolas estendeu-se para as ruas e o Harlem inteiro se transformou. A ONG Harlem Children’s Zone tem apoio financeiro da Fundação Clinton e de Bill Gates, e a experiência virou referência mundial.

Bye-bye, violência – Escola do Harlem, em Nova York: bom exemplo de como é possível resgatar a paz para ensinar (//VEJA)

A receita para reverter conflitos no ambiente escolar não tem segredo. Exige professores capacitados a adotar protocolos e medidas eficientes diante de agressões, alunos enquadrados em um conjunto de regras claras e acompanhamento minucioso, com estatísticas que mapeiem os nós antes que eles virem problemas. A recente inclusão em muitos currículos das chamadas habilidades socioemocionais — empatia, resiliên­cia, liderança e outras ferramentas essenciais no mundo atual — pode ajudar: estudantes que aprendem a enfrentar frustrações e a trabalhar em equipe, por exemplo, deixam de ver colegas e professores como seres que não merecem respeito. E deixam de fazer deles saco de pancada.

Colaboraram Edoardo Ghirotto, Hugo Marques e Luisa Bustamante

Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2017, edição nº 2545

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