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Proibindo os proibidões

Corre no Senado uma sugestão de lei que pretende tornar ilegais os bailes funk. Tentativas de vetar manifestações musicais têm nome: censura

Por Henrique Autran Dourado*
13 jul 2017, 12h49

Como profissional que vem dedicando a vida à música erudita, confesso que nunca fui fã do funk. Assim, julgo-me totalmente isento para criticar a proposta de proibir os bailes populares em que as pessoas escutam esse tipo de música e dançam ao som desse gênero forjado nos subúrbios cariocas. Por mais descabida que possa soar, essa ideia é discutida a sério no momento pelo Congresso Nacional. A chamada SUG n° 17/2017 nasceu de uma sugestão feita por um cidadão paulista, o empresário Marcelo Alonso, que conseguiu 22 000 assinaturas de apoio — o suficiente para colocá-la em pauta na Comissão de Direitos Humanos do Senado. O relator da matéria será o senador Romário, que se diz “carioca e funkeiro”.

Alonso acusa os bailes de perpetrar “um crime de saúde pública” sob o manto do que considera uma “ ‘falsa cultura’ denominada ‘funk’ ” (sic). Sabe-se que, sem dúvida, há bailes funk promovidos por bandidos com o objetivo de celebrar seu poder local — por meio inclusive das letras de apologia do crime, os famosos “proibidões” — e auferir lucros com o comércio de drogas e até a exploração sexual. Mas a proposta em debate no Congresso se vale da régua simplificadora do preconceito para uma tentativa de enquadrar todo baile em que se toca “pancadão” — e, em última instância, o próprio gênero funk — em prática essencialmente criminal. O funk existiria para atender à sanha de “criminosos” e “estupradores” ávidos por cometer abusos em série contra crianças e adolescentes, incentivando o “uso de drogas, orgias e exploração sexual, estupro, pornografia, pedofilia, arruaça, sequestro, roubo e etc.”.

Por maiores que sejam os problemas dos pancadões, generalizar a questão a ponto de proibir uma manifestação cultural é um caminho perigoso e inadmissível num ambiente democrático. A reação de maior visibilidade contra a SUG 17/2017 veio da cantora Anitta, hoje em franca ascensão até internacional, e foi dirigida aos seus quase 5 milhões de seguidores no Twitter. Ela convida “os 22 000 desinformados” que assinaram o documento a conhecer melhor seu país. Afirma que o funk é gerador de trabalho e renda, e pede a nossos legisladores que, antes de propor medidas contra um gênero musical, aumentem o investimento na educação. Pondera que, se o conteúdo das letras causa incômodo, é porque expõe a dureza da vida nas periferias, onde jovens crescem “vendo e vivendo aquilo que cantam” — pois há dificuldade de acesso das classes mais pobres a outros assuntos. A cantora também critica a falta de oferta de itens básicos como hospitais públicos a essa parcela da população, além de desafiar “quem decide nosso futuro” a “colocar seus filhos para frequentar uma escola pública sem cursinho particular”, como os jovens da periferia.

“Conviver com as diferenças, ainda que desagradáveis aos olhos alheios, é a única trilha possível rumo à civilização”

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Minha posição sobre a SUG n° 17/2017 não se pauta pela mesma simpatia, mas muito menos por qualquer credo ou ideologia: como estudioso da música, o caminho que cabe a mim é o da análise técnica do gênero e o da compreensão de seu contexto social e histórico. Assim como o equivalente americano de que empresta o nome, o funk carioca é um ritmo que fala com o corpo, evocando o lema de George Clinton: “Free your mind and your ass will follow” — algo como “libere sua mente, e seu traseiro a acompanhará”. Ou seja: é música que pode ferir sensibilidades por sua conexão direta com o sexo. Para tanto, seus artistas usam letras curtas e simples de contestação à ordem social. Falam de drogas, sexo e polícia, enquanto o ritmo se dirige ao corpo: sacudido, dançado, chacoalhado, signo de uma tribo que tem seus costumes e seu próprio modo de se comunicar. Goste-se ou não, é uma tradução da realidade das periferias cantada por seus personagens.

Buscar simplesmente a criminalização de um gênero musical seria ferir de morte os direitos e garantias individuais. Vetar a livre manifestação artística só tem um nome possível: censura. Atender ao arroubo de um pequeno segmento radical que julga falar em nome de uma pureza e uma castidade inexistentes é o tipo de hipocrisia que o mundo sabe bem em que forma de barbárie pode desaguar, desde ao menos os tempos da Inquisição. Tornar crime um gênero musical não é insensatez, é insano mesmo: uma medida que significaria um retrocesso na história e — isso, sim — um crime contra a liberdade. O blues, em seu início no sul dos Estados Unidos, surgiu no submundo das drogas, do lenocínio e outras práticas e costumes não aceitos pela sociedade. O samba, vítima de preconceito, também foi hostilizado pelas suas origens, “coisa de negro”, e viveu nos submundos considerados menos castos até ser assimilado. A música acontece em todos os ambientes, mas não é a responsável por eles: quando muito, é consequência deles. Se os arautos dessa falsa pureza alegam que nos bailes de pancadão se cometem crimes como uso e tráfico de drogas, prostituição e abuso de menores de idade, será que criminalizar o gênero vai extinguir todos os crimes por eles elencados? Já não estão todos esses crimes, afinal, tipificados no Código Penal? Se menores vão a esses bailes, o criminoso é o funk? Por que menores estão frequentando bailes de madrugada? E a educação, dever do Estado, por onde anda? O que ocorre nos bailes nada mais é que uma extensão daquilo que acontece nas famílias desestruturadas, na miséria dos barracos e favelas que os circundam. Nesse sentido, o ritmo musical funciona como sua expressão legítima e grito de alerta.

 

O episódio serve para lembrar que todo brasileiro deveria conhecer, ao menos por alto, nossa Constituição. Um dos seus pilares é o direito à livre manifestação. Mais ainda, a Carta Magna é de absoluta clareza, especificamente no caso do respeito à livre manifestação artística, que é frontalmente atingido pela proposta SUG 17/2017. O Brasil passou por diversos períodos de censura explícita, a exemplo do Estado Novo, com seu Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), nas mãos de Lourival Fontes, à imagem e semelhança do Goebbels de Hitler. Também foi o caso do regime de exceção de 1964, que chegou ao ápice a partir de 1968, com o AI-5. A censura de regimes autoritários atingiu todos os artistas. Na União Soviética de Josef Stalin, imperava o chamado realismo socialista, sob o comando de Jdanov, fiel escudeiro e censor-mor do regime. Não buscava apenas coibir excessos “burgueses”: queria obrigar todo artista a escrever, compor ou pintar sob uma ótica militarista, que falasse dos soviéticos e suas maravilhas. A censura obrigou compositores a rever sua estética, o que fez a qualidade da produção musical decair acentuadamente no período.

A lei proposta representa, portanto, o suprassumo da inversão dos valores democráticos e da violência censória — um mal de que, felizmente, nos livramos desde a Constituição de 1988. As “soluções” radicais podem agradar a certos tipos de políticos e adeptos de alguma seita. Mas conviver com as diferenças, ainda que soem desagradáveis aos olhos e ouvidos alheios, é a única trilha possível rumo à civilização.

Por fim, lembro-me de alguém já ter cogitado proibir porta-malas nos automóveis para evitar sequestros, uma vez que é naquele compartimento que os criminosos prendem suas vítimas. Essa proposta de criminalizar o funk para acabar com crimes nada fica a dever a esse delírio surreal.

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* Doutor em música, professor na USP, diretor do Conservatório de Tatuí

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