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O profeta não morreu

Uma bela mostra em Nova York celebra a obra e as ideias do americano Frank Lloyd Wright, o arquiteto que conferia beleza divina ao mundo concreto

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 1 set 2017, 06h00 - Publicado em 1 set 2017, 06h00

Ao dobrar os 90 anos, o arquiteto americano Frank Lloyd Wright (1867-1959) ainda era um trem-bala a 500 por hora. Em 1956, apenas três anos antes de morrer, ele apresentou o projeto de uma torre com 1 609 metros de altura e 528 andares. Planejada para superar qualquer rival na verticalizada Chicago, ela seria o maior arranha­-céu do mundo até hoje: o desenho de Wright trazia comparações de escala que deixavam no chinelo a pirâmide egípcia de Gizé, a Torre Eiffel e o Empire State. O projeto nunca saiu do papel. Mas, àquela altura (sem trocadilho) do século XX, isso só inflaria sua fama de visionário. Wright era um showman que participava de atrações da TV americana na condição de “arquiteto de maior renome internacional”. Ao expor suas ideias, impunha-se como um filósofo das formas naturais. “O homem é apenas uma fase da Natureza. E ele só importa por fazer parte dela”, dizia. Wright via seu ofício como uma emanação transcendental e indissociável da Natureza — à qual se referia com N maiúsculo. Para ele, o bom arquiteto era um profeta à frente de seu tempo e um poeta que captava o espírito de sua época. Uma excepcional retrospectiva em cartaz até 1º de outubro no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, serve como lembrete oportuno: num momento de crises e cansaço intelectual no Ocidente, nunca é demais celebrar o papel de cimento civilizatório da arquitetura de Frank Lloyd Wright.

A mostra Unpacking the Archive abre o inesgotável baú de plantas, esboços futuristas, escritos teóricos, fotografias e voos pelas artes plásticas de um dos fundadores da arquitetura modernista. O acervo reacende um grande Fla-Flu da arquitetura. Enquanto os seguidores da escola europeia do suíço Le Corbusier (1887-1965) preconizavam a supremacia do concreto armado e de estruturas transformadoras da paisagem, o americano Wright inventou a “arquitetura orgânica” — a busca da completa integração entre as construções e o ambiente. “A forma e a função de um edifício devem ser uma só coisa, uma união espiritual”, afirmava. Parece uma discussão abstrata, mas o leitor está menos distante do que pensa de seus efeitos práticos. A concretude dos palácios de Brasília, de Oscar Niemeyer, é filha dileta da escola de Le Corbusier. Já a Casa da Cascata — que figura nas páginas anteriores, em foto e projeto —, concebida por Wright nos anos 30 para se harmonizar com a natureza da Pensilvânia, é sua eloquente profissão de fé. “Nenhuma casa deve ser construída sobre uma montanha. Casa e montanha devem conviver e se fazer mutuamente felizes”, dizia. O leitor pode decidir por si mesmo: o que lhe parece uma moradia mais agradável, a Casa da Cascata ou o Palácio do Jaburu — que não é, reconheça-se, inteiramente desprovido de encantos?

Dândi difícil – Wright: furacão criativo e vida pessoal tempestuosa (Frank Lloyd Wright Foundation, Scottsdale, AZ/)

A visão arquitetônica de Wright tinha a ver com a fé na corrente teológica conhecida como unitarismo, que professa a conexão direta do indivíduo com Deus. Seu apreço por ela foi expresso no primeiro trabalho público, o projeto de um templo para a comunidade. Para Wright, o homem era o elo que unia natureza e construção num só organismo. E essa certeza transformou suas teorias místicas em uma causa política: a democratização da arquitetura. Ele exercitou esse desejo na construção de suas “casas da pradaria”, como as construções do bairro de Oak Park, em Chicago. Feitas nos anos 10, as casas de telhados baixos têm espaços internos amplos e livres. Wright levou sua cruzada ao extremo ao propor sistemas de construção que lembram peças de Lego, para que cada cidadão montasse sua residência como lhe conviesse.

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Espiral criativa – O Museu Guggenheim, em Nova York (Raymond Boyd/Getty Images)

A mostra do MoMA não se limita a desvendar os sistemas de habitação bolados por Wright: seus estudos não deixam dúvida quanto à ambição de forjar uma arquitetura total. Dos vegetais usados no paisagismo ao mobiliário interno e à configuração do espaço urbano, a imaginação do americano ia longe. Mal comparando de novo com os artífices de Brasília, é como se Niemeyer, Lúcio Costa e Burle Marx fossem uma única pessoa.

Espiral criativa – Ilustração de Wright dos anos 50: do paisagismo à geometria urbana, a busca por uma arquitetura total (Frank Lloyd Wright Foundation, Scottsdale, AZ/VEJA)

Sendo tantos seres brilhantes em um só, Wright não escapava de certa sina que acompanha a fama e a vaidade: era uma pessoa difícil. No seu projeto mais famoso, o Museu Guggenheim, em Nova York, ele se indispôs com os patronos por querer decidir como as obras de arte deveriam ser expostas no edifício em espiral. O arquiteto também acumulou escândalos em sua vida pessoal. O maior deles foi largar a primeira mulher para ficar com uma feminista igualmente casada, Mamah Borthwick. O episódio desdobrou-se em tragédia: a casa de campo onde o casal vivia, projetada pelo próprio, foi incendiada por um empregado maluco, que em seguida matou seis pessoas — incluindo Mamah e seus filhos — a machadadas.

Espiral criativa – Projeto (nunca construído) do planetário dos anos 20 que é uma imagem invertida da instituição (Frank Lloyd Wright Foundation, Scottsdale, AZ/)

De resto, Wright pagou o preço de ser um visionário sem limites: muitos de seus projetos são tão futuristas e ambiciosos que jamais foram realizados. É o caso da torre nababesca de Chicago, ou de um arrojado planetário com formas espiraladas dos anos 20. Mas aí se fez uma providencial reciclagem: o Museu Guggenheim é quase uma versão invertida do projeto. O profeta era capaz de milagres.

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Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546

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